Do Big Crash a uma tutela errática e errada

Não basta empurrar o Director-Geral das Artes para dar o peito às balas a fazer cortina de fumo. Impõe-se um pedido de desculpas formal do próprio Ministro pelos danos, até humanos, a quem causou um enorme stress e uma noite sem se dormir, desesperadamente, a tentar o inútil.

em artigo de opinião há uns dois meses previra que este Concurso de Apoios Sustentados às Artes da DGArtes para o Quadriénio 2023-2026, antes de o ser já tinha tudo para correr mal. O auge atingiu-se à meia-noite de 28 para 29, à entrada, portanto, do dia de terminus da entrega das candidaturas, com um crash que impediu as candidatas de aceder ao formulário. No caso daquela que dirijo (como certamente com várias outras) ocorreu no justo momento em que ia submeter a candidatura. Mas esclareço que o bug em todos os computadores da estrutura que dirijo permaneceu, pelo menos, até às 9h30, quando recorremos a um computador de um amigo que conseguiu introduzir a candidatura. Portanto, nada de pessoal me impulsiona para este artigo. O ‘meu’ problema está resolvido.

Mas sei também que com várias outras estruturas se passou o mesmo e precisavam de horas e cabeça fria para concluir os procedimentos concursais. E, pelo menos até à hora em que escrevo este artigo (meio-dia de dia 29), situações há em que o bug é intermitente, mesmo depois de a DGArtes ter dado por superado o problema. E sei também, até por experiência própria, que durante todo este processo, desde 13 de Maio, foram inúmeras as falhas, os erros mal assinalados no preenchimento, os erros não assinalados: no meio do exagero de pedidos de dados e falta de algoritmos para fazer um resumo orçamental automático, pondo-nos como estudantes do básico a fazer regras de três simples; e a demais parafernália na plataforma, que de rica só terá o preço que custou. Isso é um problema que ultrapassou a própria DGArtes, de quem se tem de dizer que, após a renovação de vários quadros, foi sempre amável, colaboradora e célere na resposta ao que ia acontecendo.

Por isso mesmo é que não basta empurrar o Director-Geral das Artes para dar o peito às balas a fazer cortina de fumo. Impõe-se um pedido de desculpas formal do próprio Ministro pelos danos, até humanos, a quem causou um enorme stress e uma noite sem se dormir, desesperadamente, a tentar o inútil. É o mínimo de humildade democrática, antecedendo a resolução destes problemas de fundo, uma vez que aceitou, nas condições que outros não aceitaram, ser Ministro de uma pasta colocada no último lugar da importância política que lhe (não) dão. Problema antigo, mas incompreensível com um Primeiro-Ministro que até é um homem culto e viveu desde criança numa família de gente da Cultura.

Desculpas técnicas como as de que não estavam previstos tantos utilizadores não servem. Até porque o número é e será crescente pelas boas e pelas más razões. Boas porque há mais artistas, jovens; más porque se prefere esbanjar na quantidade o pouquíssimo dinheiro que há, na vez de concentrar meios com meios mais alargados para aumentar os apoios na proporção do orçamento que se exige, em vez de encolher os financiamentos para apresentar números, como se a Cultura fosse uma questão de ‘numerificações’. O que se passa, com isto e com o aumento de uma política de eventos, não é democratizar a Cultura: nem para os cidadãos, nem para os artistas; e pelos vistos nem para as plataformas digitais. Para estas é crashs ou bugs, para os artistas é massificar números em dispersão, para os portugueses é impedir, de facto, a criação do hábito e o acesso a objectos decentes que se não fazem com dois tostões. Basta de objectos de contrafacção do que se faz Europa fora. Basta de cosmética, ainda para mais da comprada na ‘loja do chinês’ (passe a expressão politicamente incorrecta). Basta de ‘palhaçadas’. Os palhaços têm direito a serem artistas e não refugo das prioridades políticas: os palhaços mesmo ou os actores ou os músicos…

Porém, mais do que esta tragicomédia, dois problemas de fundo devem ser destacados nesta linha de raciocínio: porque vivemos num Estado (não é mal de agora, é antigo) de tanta incompetência e de tanta complicação nas coisas mais simples? Porque diachos, no fundo disso tudo está tratada ainda pior a Cultura? Certamente a falta desta explica muito do problema anterior. Não temos rumo, nem programa estratégico, nem sequer um orçamento decente para ela. Só a covid e as medidas de excepcionalidade disfarçaram, com carácter abissal de emergência, o que tem de ser encarado de forma estrutural. Em actos e não em palavras decorativas.

Mesmo com a coisa remendada à pressa com medidas avulsas para minorar os danos, o que é de essencial fica. O mais triste, por isso, é que as prioridades na Cultura sejam sempre e só as de excepcionalidades em hecatombes. Para tanto não há resiliência que resista. Importa pensamento, coragem para não se esconderem decisões por detrás de júris ad-hoc (a quem também se afogam em ‘papel’ digital e se pede que analisem redacções na vez de apetrechar quem responsavelmente conheça mais o que se faz do que o que se diz) e muito, mesmo muito, muitíssimo mais dinheiro. Não para mais motoristas no gabinete da Ajuda, com cada um a ganhar muito mais, mesmo muito mais, do que, por exemplo, ganha em média um actor; mas para que a nossa vida artística não seja um sobressalto, um sem-fim de falta de condições, incluindo a dignidade do e no emprego artístico e a exigência da qualidade e de Serviço Público sobreposta à tentação da quantidade de apoiados.

Depois da gafe no Parlamento com a ideia de que há condições para acabar com a precaridade na Cultura, mas não é desejável, com esta outra gafe de consequências concretas e à vista, Pedro Adão e Silva começou mal, mesmo muito mal. Mas não se pede a cabeça do Ministro, pede-se ao Ministro que tenha cabeça. É certo que por menos, por umas palavras tidas por inoportunas, numa citação queiroziana, João Soares demitiu-se, enquanto ministros há que se agarram ao barco a meter água por todo o lado. Neste e nos governos antecedentes. Não é (ainda) o caso de Pedro Adão e Silva, mas em breve o será se, a par de dar substância ao incontornável pedido de desculpas sem subterfúgios, não consiga ter os meios necessários: do efectivo do orçamento aos recursos humanos e materiais das próprias Direcções-Gerais. Ou então, há que sair deste ecrã me(r)diático de uma apolítica cultural de baixa extracção. Sem mais comentários!

P.S.: Certamente esta minha prédica, aos ouvidos do poder, é inútil. Mas pode ser um pequenino contributo que ajude na Cultura a tomarmos a iniciativa, fora de crises, numa posição de dique que estanque este rio de desgraça, mais do que numa reacção de barricada, que se desmobiliza com o tempo.

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