Isto não é sobre o aborto

A liberdade sexual e reprodutiva das mulheres ameaça os alicerces patriarcais das sociedades em que vivemos, nos Estados Unidos ou em Portugal. E, por isso, o feminismo nunca deixará de fazer sentido, porque, como dizia Beauvoir, os nossos direitos não são permanentes; temos de nos manter vigilantes toda a vida.

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EPA/CRISTOBAL HERRERA-ULASHKEVICH

O dia 24 de Junho de 2022 ficará marcado nos Estados Unidos como aquele em que o direito constitucional ao aborto foi abolido pelo Supremo Tribunal, deixando a sua regulamentação, na falta de uma lei federal, à discricionariedade dos estados.

O cerne do parecer maioritário que ditou a decisão do Tribunal é uma interpretação historicista da lei, dizendo que a palavra aborto não está no texto da Constituição e que a 14.ª Emenda, que trata da liberdade e do direito a um processo equitativo, não constitui base jurídica suficiente para daí retirar o direito ao aborto. Até porque, diz o Tribunal, na altura em que o texto foi redigido, o aborto era crime em grande parte dos estados.

Independentemente da vulnerabilidade jurídica dos fundamentos da decisão de 1973 (Roe vs Wade), o argumento contrário é facilmente esgrimido. Uma interpretação actualista obrigaria o Tribunal a considerar os valores jurídicos actuais, em vez de ficar preso aos valores de uma época em que as mulheres pouco ou nada tinham a dizer sobre os ditames da nação – principalmente depois de mais de 50 anos de garantia constitucional do direito ao aborto.

Além da discussão sobre a viabilidade de soluções federais para o tema, como uma lei federal ou o uso de enclaves jurisdicionais (os parques nacionais, por exemplo) para o acesso ao aborto, não há muito mais que do ponto de vista jurídico mereça debate.

Já do ponto de vista cultural, a decisão de 24 de Junho é o culminar de uma campanha de uma parte do partido republicano para ganhar os votos da comunidade evangélica – um enorme eleitorado que se politizou precisamente em torno do tema do aborto. Foi isso que fez Nixon mudar a sua posição sobre o aborto e foi isso que fez Trump prometer escolher a dedo os juízes para o Supremo. Com essa campanha, o partido conseguiu sedimentar o poder ao nível dos Estados.

Se olharmos para outro caso em curso, West Virginia vs EPA, este questiona a autoridade do governo federal para, a partir do poder executivo (e das suas agências, como a Agência para a Protecção do Ambiente), regulamentar emissões de gases com efeito de estufa no sector da energia. Embora possa parecer não ter qualquer ligação com Roe vs Wade, o caso faz parte de uma estratégia mais alargada de deslocação do poder para o nível estadual. Actualmente, mais de 20 Estados têm maioria republicana nas duas câmaras e um governador republicano.

Esta é uma guerra de poder que, pelo menos aos olhos de uma europeia, tem vindo a dividir a sociedade dos Estados Unidos da América e que criou uma profunda crise social e política. Era Simone de Beauvoir que dizia que bastaria uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres fossem questionados. Et voilà!

Não se trata de proteger a vida, quando a vida das mulheres é posta em risco.

Não se trata de proteger os nascituros, quando não existem políticas que garantam equidade económica para as famílias mais pobres ou marginalizadas.

Não se trata de eliminar o aborto, uma vez que as mulheres continuarão a fazê-lo, arriscando a sua saúde e a sua vida – e, para isso, seria melhor e mais eficaz a contracepção masculina ou vasectomias.

Trata-se sim de controlar os corpos das mulheres e obrigá-las a transformar a sua vida para dar à luz. Uma das opiniões dissidentes do Supremo Tribunal resume o tema assim: um Estado pode transformar o que, quando feito em liberdade, é uma maravilha, em algo que, quando forçado, pode ser um pesadelo.

A liberdade sexual e reprodutiva das mulheres ameaça os alicerces patriarcais das sociedades em que vivemos, nos Estados Unidos ou em Portugal. E, por isso, o feminismo nunca deixará de fazer sentido, porque, como dizia Beauvoir, os nossos direitos não são permanentes; temos de nos manter vigilantes toda a vida.

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