Tem a invasão russa da Ucrânia algo a ver com o Holocausto?
A resposta, particularmente de grande parte do mundo judaico, é claramente um NÃO! Mas é impossível não ver na barbárie do Kremlin algo que nos lembra a Shoah.
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Tem a invasão russa da Ucrânia algo a ver com o Holocausto? Não, porque os judeus foram deportados para os campos de concentração e de extermínio e o mesmo não acontece com os ucranianos. Não, porque a grande maioria dos judeus foram assassinados nas câmaras de gás e os seus restos reduzidos a cinzas nos fornos crematórios, o que, em princípio, não tem acontecido com os ucranianos. Não, porque contrariamente ao que vemos hoje com a invasão da Ucrânia pela Rússia, o Holocausto aconteceu num contexto de total indiferença não só a nível europeu, mas mundial, incluindo os EUA, o mesmo país que hoje é um dos principais apoiantes da causa ucraniana, nomeadamente através da ajuda financeira e militar.
Para além destas diferenças, há outras que também são reais. Mas na base da recusa de qualquer possibilidade de comparação está de alguma forma a “sacralização” do Holocausto, ou seja, do genocídio judaico. Quando falo de sacralização, não falo de religião, mas sim de algo intocável, único, irrepetível e incomparável.
Perto de duas décadas a estudar e a lidar com o tema, em paralelo com a sucessão de crimes, massacres e genocídios que desde então não deixaram de acontecer, levam-me hoje a colocar a questão de uma forma diferente: nos trágicos acontecimentos que acontecem à nossa volta parece-me importante identificar não apenas as diferenças, mas também as similitudes. Mas só se pode comparar o que se conhece bem e o estudo aprofundado do Holocausto permite-nos estabelecer relações com outros genocídios e neles detectar algo da terrível continuidade que levou ao genocídio nazi. Dito de outra maneira: o Holocausto também como referência para analisar o que se passa hoje diante dos nossos olhos. Porque, como escreveu Primo Levi, “Aconteceu, portanto, pode acontecer de novo…”
Mas nada acontece da mesma forma. Voltando à guerra desencadeada por Vladimir Putin contra a Ucrânia, aparentemente poucas semelhanças com o Holocausto surgem como óbvias. Para além das diferenças já mencionadas, o contexto histórico é outro: a Alemanha saía humilhada pela derrota da Primeira Grande Guerra e pelo Tratado de Paz de Versalhes com consequências devastadoras na economia e no dia-a-dia da sua população, o que como sabemos, não era o que se passava na Rússia. Do ponto de vista militar, a Rússia confronta-se com um exército ucraniano preparado, ao contrário dos judeus que não tinham nem armas, nem exército, nem sequer um país próprio. Também não podemos comprovar que fosse inicialmente intenção de Putin exterminar o conjunto da população ucraniana, contrariamente a Hitler para quem o aniquilamento total dos judeus foi claramente decidido e programado.
Mas desde o dia 24 de fevereiro, é impossível não ver na barbárie do Kremlin algo que nos lembra a Shoah: tal como Hitler, o fim de Putin é alargar o “espaço vital” da Rússia, ou seja, reconstruir o grande império russo, identificando-se ele próprio com o czar Pedro, o Grande, o qual desencadeou numerosas guerras para expandir a Rússia Imperial. Tal como Hitler, Putin não hesita em arrasar a Ucrânia, destruir a sua cultura, a sua economia, nomeadamente pilhando vergonhosamente os seus bens, e sobretudo não hesita em assassinar a população civil e militar, ou levar à morte os seus próprios soldados, para atingir o seu objectivo. Tal como Hitler que utilizava a propaganda e a mentira como lavagem cerebral da sua população destruindo todos os que se lhe opunham, também o Kremlin encerra a sua própria população numa prisão mental de falsidades, fazendo “desaparecer” todos os que se atrevem a erguer uma voz dissonante.
Tal como Hitler que tentou eliminar os judeus em nome da “gloriosa raça ariana”, o que se passa hoje na Ucrânia é o esforço de Putin para destruir a identidade nacional ucraniana e dos seus cidadãos. E todos sabemos que a Ucrânia é apenas um ponto de partida e apesar da invasão russa não estar a ser a esperada “Blitzkrieg”, a chamada guerra relâmpago, uma vitória de Putin será uma catástrofe para os países do Leste Europeu e uma ameaça permanente sobre a Europa de uma forma geral.
Há certamente mais semelhanças e também mais diferenças entre estes dois ditadores e os regimes que criaram. Os contextos são irrepetíveis, os meios, nomeadamente militares também diferem, mas une-os o quererem ficar para a história como os construtores de colossais Torres de Babel capazes de desafiar o divino. Une-os o total desprezo pela vida humana e pela vontade dos povos que Hitler considerava como uma massa informe, destituída de pensamento, e que Putin trata como tal. Une-os o desvario do poder absoluto, a loucura, a auto-adoração que, tal como Narciso, levou Hitler e levará Putin à sua própria destruição.