Homens, febras e cancel culture na Penha de França
Eu sou livre de insultar um familiar, mas talvez não o veja nos próximos tempos; um meio de comunicação social pode difamar, mas haverá queixas crime, exigências do direito à honra e ao bom-nome; um artista que sobe ao palco e diz: “Homem que é homem agarra na febra. Os maricas podem ficar de fora” não pode esperar que respeitemos a sua liberdade de expressão em profundo silêncio.
No passado dia 13 (que azar!), no arraial da minha freguesia, o cantor Marco Morgado grita do palco: “Homem que é homem agarra na febra. Os maricas podem ficar de fora.” Isto aconteceu em Junho, mês das festas de Lisboa onde vemos todas as classes à mesa a partilhar sardinhas, mês em que corpos de todas as cores se misturam e animam à volta de bailaricos, mês da celebração do Orgulho LGBTQIA+. Isto acontece em 2022 (38 anos depois do desaparecimento de António Variações) e o cantor Marco Morgado, tal como tanta gente, pareceu perdido no seu século.
Actualmente, a sociedade, através das redes sociais (sim, esse demónio que apenas nos vicia, consome e embrutece), repudia os abusos das “liberdades” de expressão. Vem-nos à memória uma frase batida: a tua liberdade termina onde começa a do outro. Foi isso que o criador de conteúdos Kiko is Hot no Instagram e o jornalista do Fumaça, Pedro Nuno Santos, no Twitter apontaram, sublinhando o evidente. Juntaram-se a eles as vozes digitais de Agir, Sónia Tavares, Manuel Moreira, Diogo Faro, Alex d'Alva Teixeira e associações como a Columbina Clandestina ou o Espaço Baião.
Este tipo de arrastão digital nasce quando se identificam expressões que desrespeitam grupos minoritários que sempre foram rebaixados, humilhados e excluídos. Não podem ser mais! Aqui chegados, o grupo que sempre teve mais acesso ao poder de dizer (e deve poder continuar a dizê-lo) o que lhe apetece sem quaisquer consequências indigna-se com as críticas, os memes e com a democratização do poder da comunicação, agitando a bandeira do politicamente correcto e da cancel culture.
A minha resposta para poupar batalhas e tempo (bem mais precioso nesta vida) é curta: OK boomer. Mas já não se pode dizer nada? OK boomer. E já não se pode fazer uma piada com gays? OK boomer. E as mulheres agora são todas intocáveis? OK boomer. A resposta não é séria porque a pergunta também não é séria, pois ignora o mais importante em toda esta questão: o lugar do outro. O lugar do outro serve para reflectir: o que pensará uma mulher a quem se chama febra? E um homem gay que se sente expulso de um arraial que foi organizado para promover a inclusão e a diversidade? Não interessa nada, pois a liberdade de expressão deve ser um valor absoluto e se estas piadas sempre se fizeram, porque raio ficam todos ofendidos? Será realmente isto a liberdade de expressão? Ou será que estamos apenas a querer perpetuar insultos demasiado fáceis que repetimos dos nossos tetravós?
Avancemos concordando que as palavras têm peso. Se não acreditarmos na insustentável leveza das palavras o que nos resta? Acreditamos apenas nas intenções, nos olhares, nos gestos? Eu sou livre de falar incorrectamente português, mas isso trará consequências no meu trabalho; eu sou livre de insultar um familiar, mas talvez não o veja nos próximos tempos; um meio de comunicação social pode difamar, mas haverá queixas crime, exigências do direito à honra e ao bom-nome; um artista que sobe ao palco e diz: “Homem que é homem agarra na febra. Os maricas podem ficar de fora” não pode esperar que respeitemos a sua liberdade de expressão em profundo silêncio.
Em silêncio não devem ficar as instituições, pois podem ficar fora-de-jogo. Como fez a Junta de Freguesia da Penha de França e o seu vogal para a diversidade e inclusão que repudiaram, logo na manhã seguinte, o comentário homofóbico do cantor português. A postura expectável para qualquer instituição democrática deve ser esta: estar na linha da frente no combate a todo o tipo de discriminação e defender todos os cidadãos por igual. Um exemplo a que mais entidades por todo o país se deviam juntar relembrando que é inaceitável discriminar pessoas pela preferência sexual.
Neste caso, chega até a ser abusivo falar em cancel culture, pois após o pedido de desculpas do artista e doação do cachet à ILGA, a maioria das pessoas e instituições aplaudiram a atitude do cantor e perdoaram o lapsus linguae. Com humildade avançamos todos.