Um museu de arte contemporânea: a mais recente fantasmagoria portuguesa
Num tempo em que o conjunto dos museus geridos pelo Estado está na mais inaceitável das condições de sobrevivência, numa precariedade dolorosa, como seria possível encontrar e manter um museu de arte contemporânea para Portugal?
No recente Festival de História de Arte de Fontainebleau, em que Portugal esteve em foco, teve lugar um debate subordinado ao tema A Arte Contemporânea procura o seu museu em Portugal. Um assunto por definição tão doméstico foi programado, sabe-se lá porquê, para ser discutido exclusivamente por intervenientes portugueses. Sobre as razões do mesmo, algum do conteúdo e, principalmente, o muito que ficou por debater, permito-me fazer algumas observações, chamando a atenção para questões que não deveriam ter estado ausentes e para as quais a experiência e o conhecimento de alguns conhecedores internacionais da matéria teriam sido muito úteis.
A primeira de todas as questões diz respeito ao enorme equívoco que identifica contemporaneidade com actualidade. É sempre muito excitante discutir se a arte contemporânea nasceu no pós-guerra, nos anos 60 nos Estados Unidos ou com a queda do muro de Berlim, mas a questão é de outra natureza, bem mais complexa e com mais espírito. Nada melhor e mais a propósito do que citar Giorgio Agamben no pequeno opúsculo Che cos’è il contemporaneo? (2008). Afirma o filósofo: “O contemporâneo é o inactual (evocando Barthes e Nietzsche) [...]. A contemporaneidade estabelece uma relação singular com o seu tempo, ao qual adere, mas conservando as distâncias; ela é de uma forma precisa a relação com o tempo ao qual adere por desfasamento e pelo anacronismo. [...] Aqueles que coincidem plenamente com a sua época, que à mesma querem adequar-se a ela em todos os pontos, não são contemporâneos porque, por estas mesmas razões, não a conseguem ver. Não conseguem fixar nela o seu olhar.”
Num tempo em que a função e as missões dos museus estão a ser discutidas à escala mundial, seria desejável que, ainda antes de se começar a busca do museu de arte contemporânea, se considerassem várias questões: uma colecção não é um museu, nem um conjunto de colecções instaladas num edifício constitui um museu. Um museu é um equipamento, um instrumento de produção de saber, um abrigo e um lugar de estudo, de investigação e de produção de conhecimento. Conta múltiplas histórias e abriga pessoas — museólogos, visitantes, mediadores, cientistas, historiadores — com quem co-produz o conhecimento e, muitas vezes, a ludicidade.
Um museu de arte contemporânea não pode ser um museu exclusivamente nacional. Bem pelo contrário, deve ser um arauto da cidadania universal e da mobilidade como qualidade museográfica. Por isso, é, pela sua natureza, um espaço transterritorial, internacional, transepocal. Seja virtual ou físico, tem como destinatário um auditório mundial. Um museu de arte contemporânea não é uma vitrina para os estrangeiros poderem ver as obras produzidas pelos artistas portugueses actuais. Essa função cabe às galerias, às exposições, às feiras, às mostras de arte; e, por mais paradoxal que pareça, é por isto que os museus devem estar atentos aos testemunhos da produção artística de cada tempo e buscar outras iluminações ancestrais.
Se, depois de se formularem estas questões, ainda se insistir na procura de um museu para a arte contemporânea portuguesa, há que atender a pequenos detalhes, tais como: não é o Museu do Chiado um museu nacional de arte contemporânea, ou reconhece-se que, na verdade, essa designação nunca passou de uma intenção que permaneceu no limbo? Referimo-nos a um museu privado, ou falamos de um museu do Estado? A haver um modelo, ele seguirá uma lógica mais europeia, norte-americana, chinesa...? E onde estão os recursos financeiros para a sua construção? Num tempo em que o conjunto dos museus geridos pelo Estado está na mais inaceitável das condições de sobrevivência, numa precariedade dolorosa, como seria possível, ainda que resolvidas as questões atrás referidas, encontrar e manter um museu de arte contemporânea para Portugal? Não, não vai ser! Nos próximos anos este assunto não passará de uma fantasmagoria que precisa mesmo de ir ao estrangeiro debater-se para reivindicar o direito à existência.