Hoje, a eterna Dorothy do clássico O Feiticeiro de Oz (1939) faria 100 anos. Judy Garland (1922-1969) foi uma das grandes estrelas da MGM e é certamente uma das mais acarinhadas nos Estados Unidos. Fez vários musicais e tem quatro obras que lhe asseguram um lugar de destaque na história do cinema: além de Oz, temos a obra-prima Não Há Como a Nossa Casa (1944), o alegre Quando Danço Contigo (1948), o único filme que fez com Fred Astaire, e o sobrevalorizado Assim Nasce Uma Estrela (1954). Mas os meus filmes preferidos são o majestoso Sonhos de Estrelas (1941), onde Judy contracena com duas belezas absolutas – Hedy Lamarr e Lana Turner – e A Batalha do Pó de Arroz (1946), um “western musical” bastante naïf. Em todos estes filmes, Judy cativa com a sua característica voz aveludada e a sua boca carnuda.
Toda a gente sabe da trágica vida da actriz, da sua dependência de comprimidos para dormir e das tentativas de suicídio. O que talvez não seja tão conhecido é o facto de Judy sofrer por não se considerar bonita. Efectivamente, ela não é uma beleza convencional. Mas é atraente: tem um nariz arrebitado adorável e uns olhos tremendamente expressivos e grandes. Sucede que não é sensual, elegante, exótica ou glamorosa. E, não nos esqueçamos, estava rodeada de belezas absolutas como é o caso de Lana Turner. Ao que tudo indica, Judy sofria de inveja da beleza estonteante de Lana. Ambas fizeram dois filmes juntas e, tanto num como noutro, Lana é a jovem bonita e desejável e Judy a girl next door. Na verdade este é um papel típico da actriz. Em alguns dos seus filmes, existe alguém mais glamoroso ou bonito do que ela. Mas o facto é que Judy não precisava da beleza para nada. Era uma actriz estupenda, de uma sinceridade tocante e que sabia interpretar uma canção, mesmo que esta não estivesse inserida no argumento do filme.
É incontornável não comentar aqui o estatuto de Judy enquanto ícone gay (curioso que tenha nascido e morrido em Junho, o mês do orgulho LGBTI+). Há quem especule que a famosa bandeira do arco-íris provenha da clássica canção Over the Rainbow que Judy canta (e com a qual encanta) em Oz. Todavia, ao que parece, isto não é verdade. Em 2019, publiquei um artigo científico sobre a questão de Judy ser um ícone gay. Este artigo parte de um trabalho brilhante feito pelo académico Richard Dyer nos anos 80: um capítulo do estupendo livro Heavenly Bodies (1986), intitulado Judy Garland and gay men, onde Dyer procura explicar por que a actriz apela à comunidade gay. Segundo o autor, assim como Judy foi levada pela conservadora MGM a vender uma imagem oposta à realidade, sendo que, no final de contas, ficou provado que ela não era, de todo, a “all-american girl” (mas sim uma mulher com uma vida polémica e mediática, repleta de problemas: vários casamentos, problemas com drogas, tentativas de suicídio), os homossexuais são igualmente forçados a viver de aparências (são educados para serem heterossexuais). Outra razão é o facto de se apresentar, em vários dos seus filmes, de forma andrógina. Por fim, temos o facto de Judy ser camp (facilmente caricaturada).
Esta questão do ícone gay é fascinante por não ser assim tão óbvia. Todavia, é importante frisar que Judy vai para além disso. Ela não é só uma estrela de nicho. É amplamente conhecida, popular e capaz de chegar ao coração de qualquer sujeito pela sua empatia e vulnerabilidade. É, no fim de contas, uma estrela que vai para além do arco-íris.