Apenas cinco dos perigos vários de um concurso vir a ser anulado
Não quero sabotar o Concurso, mas impõe-se uma análise jurídica rigorosa e, no extremo, que seja a própria DGArtes/Ministério da Cultura a suspender ou mesmo anular o Regulamento, corrigi-lo e reabrir o concurso.
Aqui já dera conta de que o Concurso de Apoios Sustentados para os Quadriénios e Biénios 2023/2026, ainda apenas baseado num documento de indicações gerais de preparação que a DGArtes/Ministério da Cultura (ideia que se saúda) enviou, encerrava vários paradoxos. Agora que o concurso abriu, não só me confirmam esses paradoxos, como se me levantam dúvidas e receios, inclusive em termos jurídicos. E verifico, perante várias trocas de impressões com outros colegas de profissão (numa cadeia viral de dúvidas de outros colegas desses colegas), que não se trata de pensamento unicamente meu. Isto, para já não dizer que o facto de ele aparecer antes da sua cabimentação em sede de um Orçamento de Estado ainda não aprovado, para poder ser ilegítimo, basta alguém lembrar-se de meter uma Providência Cautelar, para parar tudo, vejamos outras questões:
1. Tal como está redigido (sem determinar a obrigatoriedade de um mínimo de sessões, número de criações ou o que seja no que compete ao seu resultado mensurável junto dos públicos), é duplamente inaceitável. Desde logo porque fere, pelo menos na substância, o artigo Constitucional que determina o porquê dos apoios do Estado às actividades culturais. Este é muito claro como direito dos criadores, mas também (com a mesma, senão maior, proporção e ênfase) o acesso da fruição por parte da população em geral aos bens culturais: não ter o público como elemento razoável para a avaliação é, além de eticamente reprovável, juridicamente duvidoso, quando o queiramos assim extrapolar. É que, em segundo lugar, dividir em termos percentuais cada item para o júri apreciar, no único que tem minimamente em conta o impacto social das actividades, atribuindo-se-lhe uma valoração máxima de 7,5% é um escândalo. Ora, por redução ao absurdo, mas formalmente em absoluto possível, uma candidatura que faça uma só actividade durante todo o ano, em sessão única e com um único espectador, poderá alcançar uma taxa final de valorização de 92,75%, número que lhe garante sem dúvida, senão a melhor, uma das melhores classificações.
2. O limite de 60% de custos com a estrutura (aqui já referidos como um paradoxo em relação ao estímulo à empregabilidade) é mais grave do que imaginara. É que esse valor é sobre o subsídio concedido e não sequer sobre o orçamento do concorrente. Isto é, vg, no caso de uma estrutura, que se candidate a, suponhamos, um patamar de 300.000 euros, fica impedida de exceder os 180.000 euros com os custos da estrutura. Mesmo que consiga outro tanto de receita própria, os demais trabalhadores a contratar (a parte mais sensível nisto) ou ficam clandestinos nos próprios projectos de actividade e as verbas próprias ocultas, ou são colocados obrigatoriamente em regime de prestação de serviços, mesmo com a entidade contratante a querer fazer um contrato de maior estabilidade. Pode a estrutura recorrer a uma engenharia financeira muito imaginativa, mas, no mínimo, o que devia ser feito era a revisão destas proporcionalidades com uma outra equação e não num modelo simplista deste tipo. Eu até diria que, por exemplo, se devesse ‘obrigar’ a que, das receitas próprias geradas, uma percentagem tivesse de ser afectada à empregabilidade artística.
3. Apesar do apelo que percorre, como factor de valorização questões de defesa de direitos étnicos ou da liberdade de opção e género sexuais (de forma que, pessoalmente, acho exagerada por ir à exaustão), o nome de cada candidato está restrito, na escolha que o formulário fornece a masculino e feminino. Nem sequer a possibilidade de não-preenchimento é solução porque os algoritmos do formulário impedem a continuação do preenchimento do mesmo. Não percebo!
4. Igualmente estúpido (perdoe-se-me o adjectivo, se é duro para com a ‘inteligência artificiosa’ das folhinhas excel) é dar-se algo de muito parecido com o preenchimento de data de nascimento dos candidatos, que exige não apenas o ano (seria razoável por possíveis razões estatísticas), mas o dia e o mês do nascimento de todos e cada um dos participantes em qualquer uma das tarefas na actividade apresentada a Concurso.
5. Os curricula vitae há muito que deveriam ter sido dispensados para quem tem ao menos que fosse 20 ou mais anos de actividade pública, até reconhecida pela própria tutela. Um caso extremo é a Maria do Céu Guerra ou o João Mota, por exemplo, recentemente agraciados com Medalha de Mérito Cultural pelo Ministério também terem de pôr lá o seu curriculum para um júri ad-hoc avaliar na vez da tutela! E, em contrapartida, os curricula, para fazer prova da sua nulidade, basta dizer que não carecem de prova alguma! Nada me impediria, se fosse exótico e mito-megalómano de dizer que fui 5 anos Subdirector no Teatro de Arte de Moscovo, leccionei 7 no Actor’s Studio ou sou ‘coacher’ do Al Pacino!
Com isto não quero sabotar o Concurso (se quisesse recorria ao Poder Judicial com base no que eu mesmo invoquei), até porque, e já igualmente o realcei, ele também contém virtudes. Mas, até por isso, temo que o bebé saia com a água da banheira. Vertida agora ou depois de saídos os resultados, atrasando mais do que um qualquer adiamento agora mesmo. Impõe-se uma análise jurídica rigorosa e, no extremo, se não houver outras formas possíveis, que seja a própria DGArtes/Ministério da Cultura a suspender ou mesmo anular o Regulamento, corrigi-lo e reabrir o concurso. Ou mesmo fazer um novo com outro Regulamento.
Sabendo muito bem que não fui mandatado como porta-voz do que seja, desta vez, não sou nem voz isolada e, se calhar, nem minoritária neste caso. Acho que se impõe mesmo, como gesto de humildade democrática e bom-senso, não sinal de fraqueza, uma intervenção rápida que reconduza à sanidade um processo que, acredito, tenha boas intenções, mas muito pouca robustez estrutural. Ou estou muito enganado e, em certo sentido, então, ainda bem.