Setúbal: há mar e mar, há ir e provar
A capital de um distrito que vai do Ribatejo ao Alentejo Litoral já não é a cidade dominada pela pesca e pela indústria conserveira que foi no passado, mas continua a ser um destino mais do que seguro quando se quer ter à mesa o melhor que o mar oferece.
Em 1948, o poeta Sebastião da Gama viajou até Paris. Numa livraria, encontrou um livro de arte que muito lhe agradou. Perguntou à proprietária se o poderia enviar para Portugal, que lhe faria chegar o dinheiro. Ela respondeu que o levasse, e que, em vez de dinheiro, lhe enviasse conservas de Setúbal no valor de 1200 francos.
O episódio, relatado pelo próprio numa carta enviada à mulher, serve para ilustrar a reputação que as conservas locais tinham um pouco por toda a Europa. Chegaram a laborar, na cidade, mais de uma centena de fábricas em simultâneo. Foi essa indústria que mais contribuiu, durante as primeiras décadas do século XX, para o crescimento da cidade e do número de habitantes.
Nessa época, cerca de 80% da população local estava ligada ao mar: os homens trabalhavam na pesca, as mulheres nas conservas. O Bairro do Troino era o centro nevrálgico de um frenesim que não tinha hora marcada: quando o mar permitia, os homens faziam-se a ele e quando descarregavam o peixe as mulheres eram chamadas para as fábricas.
Hoje, a sede de concelho, e capital de um distrito que se estende a sul ao longo do Alentejo Litoral e a norte até terras do Ribatejo, é uma cidade bem diferente da desses tempos. Nas ruas do Bairro do Troino já mal se ouve o charroco, dialecto da terra, nascido pela mistura de origens e contactos dos seus habitantes com, por exemplo, os franceses, responsáveis por muitas das antigas conserveiras.
Setúbal soube, no entanto, ir-se reinventando e mantém-se, ainda hoje, uma cidade dinâmica e com uma oferta de produtos marítimos com que muito poucas conseguem rivalizar. À mesa e não só.
Para encher os sacos (e a vista)
Medir o pulso à vitalidade de Setúbal nos dias que correm é fácil: basta entrar no histórico Mercado do Livramento a um sábado de manhã. O rebuliço é de tal ordem, entre moradores e visitantes, que se torna complicado circular nos corredores entre bancas. A quantidade – e qualidade – de oferta dá vontade não só de encher os sacos, mas também a vista. É que já vai sendo difícil encontrar neste país mercados com bancas recheadas com tantas espécies diferentes de peixe e marisco.
Impressionam, pelo tamanho, portentosos exemplares de espadartes de Sesimbra e, pela frescura, outras espécies desta costa, como os salmonetes, os massacotes ou os linguados. Manda a tradição local que se complemente a ida às compras com uma ginjinha e uma bifana (especial, com presunto e queijo) na casa de Ramiro, Celisa e, já agora, da filha Tânia. Basta procurar pelo nome mais óbvio: Casa das Bifanas.
Mercado do Livramento
Avenida Luísa Todi, 163, Setúbal
Tel.: 265545392
Uma mercearia tão antiga que virou museu
Fundada em 1926 por César Silva, a Confiança de Troino estava em avançado estado de degradação quando o filho Eduardo, na altura já com 72 anos, lhe decidiu o brilho de outrora. Foi um trabalho de ourives, sobretudo para recuperar os enormes expositores de madeira que incluem tulhas cheias de cereais para venda a granel.
Depois da recuperação, a exploração do espaço foi cedida à Câmara Municipal de Setúbal, que, mantendo a mercearia aberta como tal, com uma oferta considerável de produtos locais, lhe conferiu também uma vertente museológica. Assim, atrás do balcão encontra-se sempre alguém da Divisão de Turismo, capaz de explicar aos visitantes como é que se vivia no bairro do Troino na época áurea da pesca e da indústria conserveira.
Mercearia Confiança de Troino
Praça Machado dos Santos, 2, Setúbal
Tel.: 265545010
Filho de pescador sabe assar
João Valente cresceu no meio do peixe, literal e metaforicamente. O pai e avô eram pescadores, a mãe trabalhava numa fábrica de conservas. Em criança, ia ao mar com frequência. Habituou-se, por isso, a reconhecer a melhor matéria-prima marítima desde cedo. E só o que passa no seu crivo exigente entra na montra do O Batareo, um dos destinos mais concorridos da cidade no campeonato do peixe assado. Pela frescura do produto e não só.
João instituiu no restaurante algumas técnicas próprias na preparação e confecção que lhe permitem tirar o máximo partido do sabor dos peixes: lava-os em água salgada e, por exemplo, no caso dos salmonetes – tão típicos de Setúbal –, antes de irem para a grelha são escalados e é-lhes retirado o fígado que é barrado no respectivo lombo antes de grelhar. Resulta? Oh, se resulta, basta provar para comprovar.
Convém, para tal, reservar mesa ou chegar muito cedo, sobretudo se se quiser lugar na pequena varanda/esplanada, onde a vista para a grelha proporciona a aprendizagem de truques como este. Dentro ou fora, o branco da casa, da região, é um acompanhamento mais do que apropriado ao repasto.
O Batareo
Rua das Fontaínhas, 64, Setúbal
Tel.: 265234548
Preço médio: 30 euros
E agora, para algo novo…
Uma das novidades do portefólio gastronómico da cidade – abriu portas em Outubro do ano passado –, o Peixoco, projecto de André Lucas e Constance Bauer, distingue-se facilmente dos vizinhos da Avenida José Mourinho, uma das mais profícuas da cidade no que respeita à oferta gastronómica.
Essa distinção não tem tanto que ver com o tipo de oferta, que aqui também anda à volta dos produtos do mar, mas antes com a forma como estes são trabalhados. É que se é verdade que no Peixoco existe choco frito e peixe na grelha, não é menos verdade que a casa tenta orientar os seus clientes para outras especialidades, como o arroz, os croquetes de choco ou a curiosa salsicha de peixe com puré de batata e jus de legumes.
Constance e a sua jovem equipa, bem oleada, dão boa conta de uma cozinha que se vê da sala, sobretudo dos lugares de balcão, sem esquecer algumas preocupações com sustentabilidade, sobretudo ao nível da oferta piscícola – tentam trabalhar com espécies mais abundantes e não têm medo de assumir a aquicultura como alternativa para um consumo mais consciente. Já nos vinhos, destaque para a mescla de grandes e pequenos produtores locais, uns mais clássicos, outros mais alinhados com a tendência da baixa intervenção.
Peixoco
Avenida José Mourinho, 28, Setúbal
Tel.: 265105268
Preço médio: 35 euros
Olh’à bolacha setubalense!
A família Piedade continua a baptizar e a guardar a receita criada em 1855 pela matriarca Maria Piedade, trisavó da actual gerente. A Bolacha Piedade, assim se chama, começou por ser vendida na rua, porta a porta, em tabuleiros transportados por jovens, antes de pegar de estaca numa barraca que se tornou local de romarias anuais, na Feira de Santiago.
Em 2003 ganhou também um espaço físico no centro da cidade, em plena Avenida Luísa Todi, onde todos os dias saem fornadas desta bolacha artesanal. O que nunca mudou foi a respectiva receita, que continua a transportar gerações de setubalenses para a sua infância – a erva-doce é o ingrediente-chave que lhe dá um toque anisado distintivo.
Bolacha Piedade
Avenida Luísa Todi, 502, Setúbal
Tel.: 265230875
Um tudo-em-um
A setubalense Érica Lopes trocou a vida de comercial pela de anfitriã da Arrobacheck.in, um espaço versátil que combina serviços de cafetaria, onde se destaca a oferta de pratos saudáveis e doçaria regional, com os de uma concept store dedicada aos produtos nacionais. A decoração torna o espaço bem agradável e a curadoria é cuidada, com uma oferta capaz de resolver presentes de aniversário/Natal num ápice – inclui marcas de diversas áreas e de todo o país, incluindo, obviamente, vinhos da Península de Setúbal.
Arrobacheck.in
Avenida 22 de Dezembro, 64, Setúbal
Tel.: 928041872
Moscatel com todos
Uma bifana com molho de moscatel pode até soar a experiência de laboratório, mas basta provar-se a dita para perceber a versatilidade do generoso setubalense. Essa versatilidade estende-se a outros itens da oferta do chamado Moscatel de Setúbal Experience, conceito que no centro da cidade ocupa o espaço do antigo café Brasileira. São os casos do pastel de nata de moscatel, o bombom de chocolate com moscatel ou o gelado com o mesmo sabor. Para provar no copo é só escolher uma das dezenas de referências disponíveis.
Moscatel de Setúbal Experience
Praça do Bocage, 49, Setúbal
Também existe em Tróia e na Academia de Padel de Setúbal, junto ao Parque de Vanicelos
Loucura que dá frutos
Rute Marques não se cansa de recordar – e fá-lo com orgulho evidente – os avisos que recebeu quando decidiu transformar o espaço de uma antiga discoteca num restaurante com cozinha moderna e autoral, o Xtoria. Chamaram-lhe louca e vaticinaram o fim do projecto em poucos meses, já que Setúbal não teria, diziam, público para algo do género. A verdade é que, três anos volvidos – aniversário completado a 24 de Abril –, esses temíveis augúrios estão longe de se confirmar. Pelo contrário.
Ao contrário da maioria dos seus congéneres setubalenses, o Xtoria não se projecta para o exterior. Pelo contrário: o espaço está virado para dentro, de forma a criar um ambiente intimista, sobretudo à noite.
A ementa, a cargo do jovem chef Rafael Portasio, vai mudando com frequência e apresenta produtos e receitas da terra em contextos inauditos. É o caso da sopa caramela, típica da região, que aqui é recheio de uma chamuça – ideia de Rute, que até nem cozinha. Ou o choco, em que só os tentáculos são fritos, o restante é recheado com arroz e acompanhado por tortellini de enchidos. A carta de vinhos, não sendo extensa, dá prioridade aos rótulos de algumas das mais conceituadas casas da região, casos de Bacalhôa, Ermelinda Freitas ou Quinta de Alcube, entre outros.
Xtoria
Rua Guilherme Gomes Fernandes, 17, Setúbal
Tel.: 961284144
Preço médio: 40 euros
Uma sociedade luso-japonesa
Abriu em Outubro de 2019 com a designação Carvão Ryori: a intenção de Renato Velez, o responsável, era combinar o serviço de jantares à carta com o de almoços confeccionados no binchotan, o célebre carvão vegetal japonês. Mas a pandemia trocou-lhe as voltas e nesta segunda vida essa intenção, e o respectivo prefixo, ficaram para trás.
O Ryori nasce da paixão pela cozinha japonesa: a mesma que levou Renato a fazer uma pós-graduação na área com dois conceituados mestres na matéria, Paulo Morais e Tomoaki Kanazawa, e uma viagem de vários meses por todas as regiões do Japão.
Renato, que também passou por restaurantes como o Loco e o Feitoria, partilha a cozinha do Ryori com Nicu Iastremschii, que conheceu no primeiro. Trabalham em parceria numa combinação de cozinhas – portuguesa e japonesa – que procura fazer jus à relação antiga dos dois países.
É no Mercado do Livramento que Renato compra a maioria do peixe que a dupla trabalha, de origem sobretudo local, e sem medo de se aventurar nas espécies menos nobres, como a cavala, o salmonete ou até o peixe-agulha. A carta de vinhos tem cobertura nacional e acompanha a da ementa – de três em três meses é renovada, com curadoria do sommelier Rui Petronilo.
Ryori
Praça do Marquês de Pombal, 2A, Setúbal
Tel.: 265522272
Preço médio: 35 euros
Este artigo foi publicado no n.º 3 da revista Solo.