O Sado desagua na Ku’damm

Deixei-me arrastar na corrente da saudade, e não resisti a ir jantar num pequeno restaurante português. O mais delicioso foi o cálice de Moscatel de Setúbal, depois do café. Através desse sabor, senti os perfumes silvestres da Arrábida e a maresia cintilante do Sado.

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. Goncalo Villaverde

Entre Abril e Julho de 1988, vivi em Berlim ocidental, na altura uma ilha dividida pelo muro, um verdadeiro enclave dentro do território da ex-RDA. Fiquei na casa de uma simpática família, por recomendação do meu amigo Frider Otto Wolf, filósofo e ecologista. A casa, na Motzstrasse 10, ficava numa zona da cidade com uma grande comunidade turca.

Nesse tempo, sem internet, quem quisesse fazer uma tese de doutoramento não ficava em frente do computador. Tinha de se deslocar em busca da informação física, em suporte de papel. Esses meses foram de trabalho intenso e apaixonado. Percorri as principais bibliotecas universitárias da cidade do Spree, em especial as da Universidade Livre, para a qual obtive uma bolsa de investigação.

Tinha uma vida disciplinada, fazendo uma gestão tendencialmente óptima do tempo. Era o primeiro a chegar à biblioteca e o último a sair. Como a minha tese foi sobre Kant, passei esse tempo imerso no século XVIII, embora os exercícios de fogos reais de uma unidade militar norte-americana, perto da biblioteca, me recordassem que a guerra fria ainda não tinha acabado.

Nunca saí de Berlim. Descansava um dia por semana, fazendo visitas aos museus. O contacto com a família era ainda por via postal e um par de telefonemas por semana. Como, manifestamente, não tenho espírito de emigrante, e só deixaria Portugal e a minha cidade, que foi também a de Bocage, se a isso fosse obrigado, deixei-me, por isso, arrastar na corrente da saudade, e não resisti a ir jantar num pequeno restaurante português, cujo nome não recuperei nos papéis da altura, perto da famosa avenida Kurfürstendamm (ou simplesmente Ku’damm).

Recordo-me, isso sim, de que comi sopa de legumes e bacalhau à Brás. Mas o mais delicioso foi o cálice de Moscatel de Setúbal, depois do café. Através desse sabor, senti os perfumes silvestres da Arrábida e a maresia cintilante do Sado, quando se navega à vela para Troia. Um breve mas reconfortante regresso a casa.


Este artigo foi publicado no n.º 3 da revista Solo.

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