Quando os pais sofrem de uma doença mental, o que é que acontece aos filhos?
As relações que estabelecemos com os nossos pais definem a forma como vamos interagir com outros. Em casos em que os pais têm uma doença mental, os filhos têm tendência a desenvolver problemas semelhantes, a alterarem o comportamento e a questionarem o seu lugar na família.
Quando a saúde mental dos pais está em causa, a dos filhos também. Vários estudos indicam que uma criança filha de pais com doenças mentais tem uma maior probabilidade de desenvolver transtornos semelhantes ou associados. Filipa Costa Macedo, psicóloga na Associação Casa Estrela do Mar e na Family Building, em Lisboa, com especialização em terapia familiar e de casal, explica que “nos comportamentos depressivos há uma componente que pode ser hereditária, havendo uma maior probabilidade de se poder vir a manifestar nesta criança quando atingir a adolescência”. Somadas a este factor estão um conjunto de emoções negativas que podem levar a tendências depressivas. A psicóloga acrescenta que “há um desgaste e um cansaço muito grande” nessas crianças. “A um nível mais profundo, pode activar uma tristeza grande, um sentimento de abandono e de rejeição por parte dos pais”, alerta.
Além da baixa auto-estima, esses sentimentos podem contribuir ainda para uma má prestação a nível académico. “É natural que, por estarem mais fragilizados, os filhos tenham dificuldade em aprender, em estar concentrados e motivados para os desafios da escola”, diz a especialista, acrescentando que tal sucede “sobretudo quando a família tem uma rede de apoio limitada”. Mais: a forma como uma criança se relaciona com os pais é vital para definir a sua capacidade de interagir com outros. “Se esta vinculação é frágil, é natural que as outras relações também venham a ser. Uma criança que cresceu com medo de ser rejeitada, de perder os pais ou com um sentimento de abandono vai levar isto para outras relações”, acrescenta Filipa Costa Macedo.
A indisponibilidade dos pais pode ainda fazer os filhos acreditarem que as suas emoções não são “validadas e acolhidas”, o que os leva a procurar outras formas de as expressarem. “Muitas vezes pode ser através de comportamentos desviantes: como há falta de espaço para poderem existir de forma mais facilitada, criam o seu próprio espaço de expressão e, por isso, têm problemas com os colegas ou professores, dificuldades na gestão da raiva e até podem agredir outras pessoas ou a si próprios”, explica.
Na mesma linha, Miguel Ricou, psicólogo e presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, explica que, nestes casos, há tendência para criar um padrão cíclico de negatividade que se estende de geração em geração. As pessoas “tornam-se mais inseguras” porque, inconscientemente, estão “à procura de conseguir sentir aquele amor dos pais e atenção incondicional”. Isso leva-as a “cobrar”, em adultas, o que sentiram que faltou enquanto cresciam, explica. “Todos nós temos aquelas coisas que até nem gostávamos dos nossos pais e, de repente, damos por nós a fazer o mesmo com os nossos filhos”, reitera.
Inversão de papéis
Por vezes, os comportamentos e as dinâmicas familiares ficam alterados. Os filhos questionam a sua posição na família, assumindo “papéis que não seriam expectáveis na ausência da doença mental” dos pais e chamam a si a responsabilidade de cuidarem dos progenitores ou dos irmãos mais novos. Com esta inversão de papéis, há vários cenários possíveis, diz Filipa Costa Macedo. No primeiro, a criança começa a fechar-se, e, ao tentar assumir a função de cuidador, acaba por mostrar atitudes confrontativas, impositivas e agressivas. Mas também há as que se tornam “mais resilientes”. Alguns estudos indicam que estas crianças percepcionam-se como mais independentes e “tornam-se mais atentas às necessidades dos outros, porque é uma posição que têm de assumir em casa”, contextualiza.
No entanto, para Miguel Ricou, ao permitir que essa responsabilidade caia sobre as crianças, está-se a “privar os filhos de serem filhos”. O especialista explica que, durante a infância, existe uma “confiança absoluta” nos adultos, por isso, sabem que podem “fazer disparates” porque têm a segurança de que “os pais vêm e resolvem”. “Isso é fundamental para as pessoas terem a capacidade de enfrentar dificuldades”, explica. Quando falta alguém que ajude, inevitavelmente arrisca-se menos, o que vai “limitar os mecanismos de resolução de problemas e a palete de capacidades para responder a situações”.
Muitas vezes, por vergonha ou como forma de proteger os filhos e a família, o problema não é discutido abertamente (sobretudo quando se trata de doenças como depressão ou ansiedade). Assim, as dúvidas que os filhos sentem quanto à sua posição na família aumentam, criando-se uma grande insegurança que os pode levar a distanciar-se do progenitor. Filipa Costa Macedo explica que estes filhos não querem “vivenciar nem confrontar-se com isso” e que, sobretudo durante a adolescência, procuram conforto noutras pessoas para poderem “experimentar relações diferentes”.
Em casos mais graves, quando os pais mostram comportamentos autodestrutivos, os filhos são confrontados com uma realidade muito difícil de aceitar. O medo de abandono, de rejeição e de perda dos pais leva as crianças a questionar se são uma prioridade, criando inseguranças que transportam consigo para o resto da vida. Miguel Ricou salienta, porém, que nestes casos os pais não são capazes de perceber que estão a falhar. “É esse o problema da doença mental. Quanto mais as pessoas sofrem, mais se focam no seu sofrimento.”
Apesar de depender dos casos e da sintomatologia do doente, Filipa Costa Macedo acredita que a terapia familiar pode ter um papel central. Com acompanhamento especializado, é possível ajudar os doentes a compreender, assimilar e reconhecer as repercussões que a doença cria na vida de pais e filhos. “Há uma mais-valia muito grande em intervir com a família. Embora muitas vezes isto possa ser feito em paralelo com outros acompanhamentos individuais”, avalia.
Contudo, muitas vezes o processo não começa pela pessoa doente. O foco é passado para aqueles que a rodeiam, principalmente para as crianças que, além de serem fortemente afectadas, também podem não compreender o que está a acontecer. Com intervenções familiares, além de se trabalharem as relações, cria-se um espaço neutro e controlado para conversar, diz Filipa Costa Macedo. “As pessoas por quem sentimos emoções fáceis ou difíceis estão ali para nos ouvir. E temos outras pessoas [os terapeutas] que nos ajudam a ir decifrando o que sentimos e a passar isso de uma forma mais saudável do ponto de vista da comunicação”, completa.
Já Miguel Ricou acredita que a solução pode estar nas intervenções preventivas. Para o especialista, a chave para lidar com este tipo de casos é “normalizar” o acompanhamento “no sítio onde estão as pessoas”, ou seja, desde as escolas até aos ambientes profissionais. “Aí, podemos fazer uma educação psicológica deliberada. A ideia é ensinar as pessoas, neste caso as crianças, e fazer actividades que de alguma forma lhes tragam mais ferramentas e capacidades para gerir essas dificuldades”, remata.
Texto editado por Bárbara Wong