Gabinetes de futuras necessidades

Tal como os livros numa biblioteca, os espécimes das coleções de história natural são, acima de tudo, fonte de dados científicos.

A zona circundante à antiga Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, hoje Reitoria da mesma instituição, faz parte da movida das noites dos estudantes da cidade. À volta dos bares e do famoso Piolho, reúnem-se todas as noites largas centenas de estudantes e jovens investigadores da universidade e demais instituições de ensino superior da cidade. Embora alguns destes futuros cientistas não saibam, a escassos metros de onde bebem uns copos, encontra-se uma das coleções de história natural mais importantes do país – as coleções do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto.

Para além das exposições que vão abrindo no âmbito da renovação desta centenária instituição científica e museológica, das suas salas e laboratórios históricos, a alguns metros abaixo dos pés destes futuros investigadores encontram-se as reservas do museu. Neste moderno bunker, totalmente equipado para preservar coleções, aguardam para serem estudados e descritos quase um milhão de espécimes de história natural – um autêntico bunker de futuras descobertas. Um gabinete, não de curiosidades, mas de futuras necessidades.

Arrumadas e acondicionadas em vários armários construídos para o efeito, guardam-se coleções de insetos – de escaravelhos a borboletas – de peixes, de anfíbios, répteis, mamíferos (“empalhados” e as suas ossadas), aves, fósseis, herbários de plantas e coleções de sementes, peças arqueológicas, etc. Este acervo constituído ao longo de décadas por investigadores, professores e alunos da Universidade – e que contínua nos dias de hoje a ser aumentado – é uma ferramenta sem paralelo para o estudo, ensino e divulgação da diversidade do nosso planeta.

O volume e forma de preparação destas coleções torna de todo impossível que estejam totalmente expostas ao público no tradicional formato de exposição. Mas não estarem expostas não significa que estejam inacessíveis. Mais cedo ou mais tarde, durante a sua carreira académica, científica e/ou profissional, alguns dos futuros investigadores que hoje bebem uma cerveja ali ao lado, irão precisar de consultar espécimes destas coleções. Tal como o público em geral a quem as reservas estão sempre disponíveis para serem consultadas.

Face a tal diversidade, não é incomum que quem visita estas reservas exprima um sonoro “uau” e que fique com uma aguçada curiosidade de explorar ou estudar ainda mais este acervo. As reservas são também elas, não um gabinete de curiosidades, mas um local que estimula a curiosidade.

É comum que a maioria do público, alguns decisores e mesmo muitos cientistas imaginem estes museus e as suas reservas como os míticos gabinetes de curiosidades dos sábios do passado. Mas há diferenças profundas e fundamentais entre os gabinetes de curiosidades e os museus de história natural modernos. Tão profundas que podemos assumir que os museus de história natural são, de certo modo, o exato oposto dos gabinetes de curiosidades. O seu aparecimento no final do século XVIII e início do século XIX assume-se como uma rutura com o passado, transformando aquilo que era visto já na altura como uma atividade pessoal e diletante, numa atividade de cariz comunitário e científico.

No gabinete de curiosidades é a subjetividade, a estética e os interesses e gostos pessoais do seu proprietário que mais imperam. Não há um método que não apenas a capacidade financeira do “curioso” para adquirir espécimes e materiais, e os seus objetivos e funções esgotam-se na fruição pelo próprio ou pelos seus seletos convidados. É uma coleção privada, obedecendo única e exclusivamente ao seu dono.

Pelo contrário, o museu de história natural surge para responder a necessidades objetivas das sociedades. A sua organização interna obedece a regras partilhadas por toda a comunidade científica, o seu âmbito é claramente definido pelas disciplinas que abarca (botânica, zoologia, geologia, etc.) e a sua função prende-se fundamentalmente pela investigação, o ensino e a divulgação científica para a comunidade. O museu de história natural serve para responder às necessidades da sociedade, o gabinete de curiosidades serve apenas a curiosidade do proprietário.

Talvez a forma mais interessante e intuitiva de entender o que é e como funciona um museu de história natural é traçarmos um paralelo entre estes e as bibliotecas. E talvez seja interessante fazermos este exercício – praticamente ninguém na sociedade atual põe em causa a necessidade de existência de bibliotecas. O meu dia-a-dia no museu onde sou curador, entre muitas outras coisas, é passado a responder a pedidos de acessos e consulta às vastas coleções do nosso museu. A sua grande maioria de cientistas e estudantes de todas as partes do mundo. “Preciso de consultar espécimes do género X da região Y, existem exemplares no vosso museu?” é a pergunta que mais nos chega ao email.

Estas consultas pretendem responder a diversas perguntas – será que os espécimes da espécie X são hoje, devido às alterações climáticas, diferentes daqueles coletados há século e meio? Determinado agente patogénico está presente nos espécimes desta ou daquela região? Qual a diferença entre o nível de cortisol (hormona responsável pelo stress) em populações de mamíferos de hoje em dia quando comparado com os do passado? Será que determinada população de determinada espécie em determinada região é igual às de outra, ou é uma espécie nova para a ciência? Tal como numa biblioteca, corro a nossa base de dados e, caso tenha o(s) espécime(s) pretendido(s), trago-o(s) para o laboratório onde o investigador o(s) pode consultar. Tal qual como quando vamos à biblioteca pedir um ou mais livros para consultar.

Numa biblioteca a organização dos livros nas suas reservas obedece a regras coerentes e objetivas – os livros estão organizados por tópico, por tema, por autor, por data, etc. No museu de história natural estão organizados por ordem taxonómica (por grupo de animal/planta/rocha e suas afinidades filogenéticas), por região geográfica, por data de coleta, etc. No gabinete de curiosidades estão (estavam) organizados pelo gosto do proprietário – por tamanho, por cor, por preferência pessoal... Imaginem o que seria pedir para consultar um livro numa biblioteca assim (des)organizada.

Tal como os livros numa biblioteca, os espécimes das coleções de história natural são, acima de tudo, fonte de dados científicos. Estes dados são fundamentais para responder a algumas das perguntas científicas e necessidades globais mais urgentes que as gerações presentes e futuras enfrentam. Da galopante perda de biodiversidade e extinção de espécies a nível mundial, ao impacto das alterações climáticas ou pandemias globais. Mais – são um repositório da diversidade genética do nosso país, região e planeta, o que lhes atribui uma importância estratégica até do ponto de vista geopolítico.

Só nos últimos meses, nas coleções do nosso museu, encontraram-se várias novas espécies até então desconhecidas para a ciência. Um colega paleontólogo encontrou, ao estudar as nossas coleções, um raro exemplo de uma planta fóssil do carbonífero (300 milhões de anos) que apresenta já importantes adaptações às alterações climáticas da altura. Outra colega, bióloga marinha, dissertou sobre a importância de algumas esponjas do mar profundo como potencial inspiração para novos materiais que podem no futuro substituir a fibra ótica ou até inspirar novas soluções arquitetónicas. Na equipa de curadores, vários colegas contribuem para a revisão das listas de espécies ameaçadas de plantas e animais ameaçadas no país, e vários estudantes e investigadores da Universidade do Porto analisam através de espécimes do museu o DNA de espécies ameaçadas de icónicos mamíferos africanos como o gorila do Maiombe.

Outros estudantes usam as nossas coleções para as suas teses de mestrado e doutoramento, e as próprias autoridades do poder local recorrem ao museu para apoio na inventariação da fauna e flora dos seus concelhos.

Tudo isto é apenas possível pela existência e acessibilidade das vastas coleções do museu e pela experiência e conhecimento acumulados pelos seus curadores. Tudo isto representa uma imensa mais valia não só para a universidade, para o seus estudantes, professores e investigadores, mas também para o país e para o mundo. Esta importância tem felizmente vindo a ser cada vez mais reconhecida pela comunidade. A unanimidade demonstrada por todos os candidatos a reitor da Universidade do Porto nas suas recentes candidaturas e apresentações públicas relativamente ao importante papel do museu para o ensino e investigação é disso um sinal claro e encorajador para o futuro da instituição.

Face aos desafios que se impõem à humanidade nas próximas décadas, é importante tirarmos o máximo partido dos dados e informações que estas coleções nos podem dar. A resolução destes desafios, as futuras descobertas, projetos e investigações estão nas mãos daqueles que hoje descontraidamente apreciam uma bebida após as aulas pela zona do Piolho – os cientistas, investigadores e decisores do amanhã. E nesse sentido, é legítimo apelidar estes museus, não como gabinetes de curiosidades, mas sim como gabinetes de futuras necessidades.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar