As mil e uma noites de Boris Johnson
Elevando ligeiramente o nível de indignação em cada história e recusando demitir-se (desobedecendo ao código de comportamento ministerial que assinou), Boris e os seus ajudantes conseguem que a comunicação social e o público não saibam para onde se virar.
Volta, Theresa May, estás perdoada! No dia 19 de Abril de 2022 fomos brindados com o milésimo dia de Boris Johnson como primeiro-ministro do Reino Unido. Como é possível, indagamos nós, que uma personagem tão antagonista, oportunista, sub-reptício e egoísta se consiga manter no poder tanto tempo? O método é simples, genial e milenar: o concubino BoJo, tal Sherazade n’As Mil e Uma Noites, anda a contar histórias cada vez mais mirabolantes aos eleitores britânicos com o objectivo de reter a sua posição no número 10 de Downing Street, uma noite de cada vez. A lista de lengalengas é quase interminável, mas aqui fica uma compilação do género Now That’s What I Call Mediocrity!.
Desde apoiar ministros culpados por bullying aos seus próprios funcionários públicos, enganar a rainha (!) sobre a razão pela qual decidiu suspender o Parlamento em plena crise, dar preferência a animais em vez de seres humanos durante a evacuação do Afeganistão, cancelar o Natal, literalmente esconder-se num frigorífico para evitar o escrutínio da comunicação social, levantar falsas suspeitas sobre a relação entre o líder da oposição e o pedófilo mais prolífico que houve no reino, despachar refugiados com um bilhete sem volta para o Ruanda, Boris demonstra possuir uma agilidade e flexibilidade moral equiparável à de Sinbad, O Marinheiro.
Numa reencenação de Aladino, o Governo conservador recusou-se a esfregar a lâmpada mágica e dar de comer às crianças que mais precisam, quebrou a promessa eleitoral e aumentou impostos a meio de uma crise de inflação e rendimentos que anda a forçar milhões de pessoas a ter de escolher entre comida quente e estar quente na hora da comida. O melhor ainda está para vir, com o mais recente Orçamento de Estado a identificar que o impacto a longo prazo do Brexit no produto interno bruto vai equivaler a duas pandemias. Sim, leram bem.
Ao bom estilo do Ali Babá e os Quarenta Ladrões, o seu Governo fartou-se de dar contratos públicos bilionários aos amigos, nomear oligarcas com ligações ao KGB para a Câmara dos Lordes, remodelar a residência do primeiro-ministro às custas de doadores milionários sem o declarar, afirmar que a atribuição de centenas de milhares de libras de fundos públicos à empresa de uma amiguinha extra conjugal enquanto Mayor de Londres foi feita de forma perfeitamente honesta e íntegra, entre muitas outras formas de compadrio e tráfico de influências.
Tudo isto, e muito mais, enquanto se lambuzava, como o sultão de Sherazade, em queijo e vinho, nas múltiplas festas organizadas em Whitehall contra as regras instituídas pelos líderes de... er... Whitehall, ao mesmo tempo que milhões de pessoas choravam pazadas de mortos por videoconferência.
Elevando ligeiramente o nível de indignação em cada história e recusando demitir-se (desobedecendo ao código de comportamento ministerial que assinou), Boris e os seus ajudantes conseguem que a comunicação social e o público não saibam para onde se virar. Os jornalistas e comentadores ainda estão a meio da apoplexia gerada por mais um caso de incompetência ou comportamento deplorável, e mais dois ou três se vislumbram a caminhar na sua direcção no horizonte. Mas o facto de entrar na história por ser o primeiro primeiro-ministro no activo a quebrar a lei não vai ser o pior legado de Boris Johnson. Tal Prince of Persia, saltitando de plataforma em plataforma enquanto o edifício da democracia rui à sua volta, BoJo deixa-nos algo bem pior que a soma de todos os escândalos: a erosão da confiança colectiva nas instituições democráticas e nas pessoas eleitas para nos representar.