E se um futuro sem desperdício alimentar começar na cantina da escola?
No Instituto Politécnico de Bragança, um projecto português visa reduzir o desperdício alimentar. Conservantes naturais que aumentam a vida dos frescos e um aparelho que analisa os restos na cantina são algumas das soluções que o Bioma está a desenvolver.
Meia tigela de sopa, metade de um bife ou pequenos montes de arroz debaixo de talheres cruzados no prato. Na cantina de uma escola ou instituição de ensino superior é comum ter a visão de centenas de tabuleiros a voltar para trás, ainda com comida. Todos os meses, toneladas de resíduos alimentares vão parar ao lixo. Para tentar contornar este problema, no Instituto Politécnico de Bragança (IPB) estudam-se formas de reduzir o desperdício, começando por algo tão simples como reformular o empratamento das refeições.
Na cantina do campus, um aparelho munido de câmara fotográfica e balança está a monitorizar o desperdício em tempo real, prato a prato. Um tabuleiro de cada vez, registam-se quantos grãos de arroz ficaram para trás, quanta salada não foi sequer tocada ou se o peixe sobra mais em comparação com a carne.
O projecto chama-se BIOma Smart Monitoring Concept e o objectivo é estabelecer padrões com recurso a inteligência artificial: analisando as imagens e o peso do tabuleiro, o algoritmo do dispositivo identifica, sinaliza o que sobra e compara a informação. Desta forma, pretende-se perceber se os alunos têm preferências por determinados alimentos, se algum produto tem características sensoriais que o tornem menos apelativo ou se, no geral, está a ser servida comida a mais.
Foi instalado no início de 2022 e está a funcionar como teste-piloto, constituindo também o primeiro protótipo. Mas a instalação é apenas o primeiro passo — a meta para o futuro é criar uma solução mais pequena e portátil que possa ser implementada, de forma mais abrangente, na restauração.
“Só vamos conseguir sustentar os processos de inovação e desenvolvimento através da digitalização”, acredita José Barbosa, director de projectos do CoLAB MORE, um laboratório colaborativo envolvido na iniciativa. “A inteligência artificial vai ajudar-nos a automatizar processos analíticos e de previsão altamente complexos.” Ao “treinar algoritmos”, sustenta, é possível revolucionar o funcionamento da indústria alimentar.
Dar mais tempo de vida aos frescos, sem corantes nem conservantes (artificiais)
Mas a missão desta equipa para acabar com o desperdício não fica por aqui. Do outro lado do campus, contornando-o por fora, entra-se pelo portão verde da Escola Superior Agrária, que se diz ser a entrada mais antiga do IPB. Num edifício branco, ao lado da escola, onde se lê Centro de Investigação de Montanha (CIMO), a professora e investigadora Lillian Barros acompanha-nos através das portas de vidro.
Num dos vários laboratórios do centro, uma equipa especializada em bioquímica está a trabalhar em formas de prolongar a vida dos produtos alimentares de quarta gama — isto é, frescos, como frutas, vegetais ou tubérculos que, apesar de não serem processados, recebem um tratamento ligeiro, como corte e lavagem.
Como estão sujeitos a oxidação e escurecimento rápidos, para evitar que acabem no lixo cedo demais está a ser desenvolvido um novo tipo de conservantes a partir de produtos de origem natural. Os investigadores extraem matrizes de ervas aromáticas e plantas medicinais, que posteriormente são depuradas e tratadas para dar lugar a óleos essenciais. Lillian Barros, que lidera a investigação, explica que este é o “ingrediente” que permitirá aumentar o tempo de prateleira de certos alimentos: uma solução amiga do ambiente, com propriedades antioxidantes e antimicrobianas, que actuam sem alterar o sabor ou as características dos produtos. Simultaneamente, na sala adjacente ao laboratório, aplicam-se os produtos da extracção em placas para analisar como reagem aos microrganismos.
Tal como o scan da cantina, este conservante integra o BIOsave, uma parcela de um projecto nacional de redução de desperdício alimentar que não se cinge às quatro paredes do Politécnico de Bragança. Nesse sentido, partindo as descobertas feitas no CIMO e aproveitando os desperdícios de outros parceiros, estão também a ser desenvolvidas, na Universidade Católica, alternativas para caixas herméticas e películas amigas do ambiente. A intenção é produzir “filmes biodegradáveis” que actuem como conservantes, sem requerer contentores físicos.
“Neste momento já desenvolvemos o ingrediente e o melhor biofilme para o aplicar. (…) A segunda fase, que estamos a desenvolver a nível laboratorial, é o scale-up: queremos produzir o ingrediente bioactivo numa escala piloto em Portugal e, em conjunto com a Silvex [empresa envolvida no projecto], produzir os biofilmes a nível industrial”, adianta Lillian Barros, explicando que os investigadores circulam entre as instituições para testar os produtos e partilhar os avanços.
No entanto, e ainda que contemple soluções inovadoras, o BIOsave constitui apenas uma parte de um projecto maior, que se ramifica à escala nacional, com selo português: o Bioma.
Nascido em Julho de 2020, durante a pandemia, o Bioma procura soluções para reduzir o desperdício na indústria agro-alimentar e para viabilizar as sobras. Sob a liderança da Campotec, uma empresa dedicada à distribuição, comercialização e consultadoria de hortofrutícolas, a iniciativa juntou um consórcio de 24 entidades portuguesas, incluindo empresas da indústria agro-alimentar, instituições de ensino superior e de investigação.
Um futuro sem desperdícios é actual
A nível estrutural, o Bioma divide-se em cinco partes (ou produtos, processos e serviços, PPS). Complementando os avanços feitos no BIOsave, com especial enfoque na área de inovação, surge o BIOvalue, cuja preocupação principal é aproveitar as categorias secundárias de frescos. “Queremos encontrar formas de dar nova vida a desperdícios alimentares, seja criando novos alimentos ou reduzindo o nosso impacto no ambiente por utilização destes resíduos para fazer processos de compostagem”, explica Délio Raimundo, representante da Campotec, em conversa telefónica com o P3. Com este sistema, pretendem criar uma economia circular onde se possam “usar as frutas da campanha anterior para alimentar as frutas da campanha seguinte”, adianta. Quanto à criação de novos produtos, constam aperitivos, frutas desidratadas ou smoothies, feitos a partir do que não segue para os mercados ou das partes que não são usadas (como caules e folhas).
Nas restantes PPS, o foco é o digital. No BIOtrace, está a desenvolver-se um sistema de rastreabilidade para os alimentos: através de QR codes, o consumidor poderá verificar a origem, cadeia de valor e qualidade do produto, de forma a facilitar o processo de compra e torná-lo mais informado. Segue-se o siBIO, que se destaca pelo desenvolvimento de uma plataforma digital para a medição do índice de sustentabilidade das empresas. Délio Raimundo esclarece que se pretende incitar a implementação contínua de metas de sustentabilidade, de forma a reformar a indústria de uma forma geral. Por fim, para unir todas as vertentes, surge o BIOecossystem, que consiste numa plataforma para partilhar estes produtos e serviços desenvolvidos no Bioma.
“Temos o objectivo de levar isto para o panorama internacional, estar presentes em feiras e apresentar as soluções que forem aqui desenvolvidas”, remata o representante da Campotec. O foco primário é, ainda assim, alcançar a indústria nacional. A ambição é criar algo que possa revolucionar o funcionamento da indústria alimentar ou até entrar noutras áreas. Estima-se que até 2023 consigam ter os protótipos finalizados, prontos para apresentação e implementação.
Texto editado por Ana Maria Henriques