E se um futuro sem desperdício alimentar começar na cantina da escola?

No Instituto Politécnico de Bragança, um projecto português visa reduzir o desperdício alimentar. Conservantes naturais que aumentam a vida dos frescos e um aparelho que analisa os restos na cantina são algumas das soluções que o Bioma está a desenvolver.

empresas,portugal,ensino-superior,ambiente,residuos,investigacao-cientifica,
Fotogaleria
Paulo Pimenta
empresas,portugal,ensino-superior,ambiente,residuos,investigacao-cientifica,
Fotogaleria
Paulo Pimenta

Meia tigela de sopa, metade de um bife ou pequenos montes de arroz debaixo de talheres cruzados no prato. Na cantina de uma escola ou instituição de ensino superior é comum ter a visão de centenas de tabuleiros a voltar para trás, ainda com comida. Todos os meses, toneladas de resíduos alimentares vão parar ao lixo. Para tentar contornar este problema, no Instituto Politécnico de Bragança (IPB) estudam-se formas de reduzir o desperdício, começando por algo tão simples como reformular o empratamento das refeições.

Na cantina do campus, um aparelho munido de câmara fotográfica e balança está a monitorizar o desperdício em tempo real, prato a prato. Um tabuleiro de cada vez, registam-se quantos grãos de arroz ficaram para trás, quanta salada não foi sequer tocada ou se o peixe sobra mais em comparação com a carne.

O projecto chama-se BIOma Smart Monitoring Concept e o objectivo é estabelecer padrões com recurso a inteligência artificial: analisando as imagens e o peso do tabuleiro, o algoritmo do dispositivo identifica, sinaliza o que sobra​ e compara a informação. Desta forma, pretende-se perceber se os alunos têm preferências por determinados alimentos, se algum produto tem características sensoriais que o tornem menos apelativo ou se, no geral, está a ser servida comida a mais.

Foto
Na cantina, os alunos pesam o conteúdo do tabuleiro depois da refeição Paulo Pimenta

Foi instalado no início de 2022 e está a funcionar como teste-piloto, constituindo também o primeiro protótipo. Mas a instalação é apenas o primeiro passo — a meta para o futuro é criar uma solução mais pequena e portátil que possa ser implementada, de forma mais abrangente, na restauração.

“Só vamos conseguir sustentar os processos de inovação e desenvolvimento através da digitalização”, acredita José Barbosa, director de projectos do CoLAB MORE, um laboratório colaborativo envolvido na iniciativa. “A inteligência artificial vai ajudar-nos a automatizar processos analíticos e de previsão altamente complexos.” Ao “treinar algoritmos”, sustenta, é possível revolucionar o funcionamento da indústria alimentar.

Dar mais tempo de vida aos frescos, sem corantes nem conservantes (artificiais)

Mas a missão desta equipa para acabar com o desperdício não fica por aqui. Do outro lado do campus, contornando-o por fora, entra-se pelo portão verde da Escola Superior Agrária, que se diz ser a entrada mais antiga do IPB. Num edifício branco, ao lado da escola, onde se lê Centro de Investigação de Montanha (CIMO), a professora e investigadora Lillian Barros acompanha-nos através das portas de vidro.

Num dos vários laboratórios do centro, uma equipa especializada em bioquímica está a trabalhar em formas de prolongar a vida dos produtos alimentares de quarta gama — isto é, frescos, como frutas, vegetais ou tubérculos que, apesar de não serem processados, recebem um tratamento ligeiro, como corte e lavagem.

Foto
Investigadores trabalham para o projecto Bioma no Centro de Investigação de Montanha, no Instituto Politécnico de Bragança. Paulo Pimenta

Como estão sujeitos a oxidação e escurecimento rápidos, para evitar que acabem no lixo cedo demais está a ser desenvolvido um novo tipo de conservantes a partir de produtos de origem natural. Os investigadores extraem matrizes de ervas aromáticas e plantas medicinais, que posteriormente são depuradas e tratadas para dar lugar a óleos essenciais. Lillian Barros, que lidera a investigação, explica que este é o “ingrediente” que permitirá aumentar o tempo de prateleira de certos alimentos: uma solução amiga do ambiente, com propriedades antioxidantes e antimicrobianas, que actuam sem alterar o sabor ou as características dos produtos. Simultaneamente, na sala adjacente ao laboratório, aplicam-se os produtos da extracção em placas para analisar como reagem aos microrganismos.

Tal como o scan da cantina, este conservante integra o BIOsave, uma parcela de um projecto nacional de redução de desperdício alimentar que não se cinge às quatro paredes do Politécnico de Bragança. Nesse sentido, partindo as descobertas feitas no CIMO e aproveitando os desperdícios de outros parceiros, estão também a ser desenvolvidas, na Universidade Católica, alternativas para caixas herméticas e películas amigas do ambiente. A intenção é produzir “filmes biodegradáveis” que actuem como conservantes, sem requerer contentores físicos.

“Neste momento já desenvolvemos o ingrediente e o melhor biofilme para o aplicar. (…) A segunda fase, que estamos a desenvolver a nível laboratorial, é o scale-up: queremos produzir o ingrediente bioactivo numa escala piloto em Portugal e, em conjunto com a Silvex [empresa envolvida no projecto], produzir os biofilmes a nível industrial”, adianta Lillian Barros, explicando que os investigadores circulam entre as instituições para testar os produtos e partilhar os avanços.

No entanto, e ainda que contemple soluções inovadoras, o BIOsave constitui apenas uma parte de um projecto maior, que se ramifica à escala nacional, com selo português: o Bioma.

Nascido em Julho de 2020, durante a pandemia, o Bioma procura soluções para reduzir o desperdício na indústria agro-alimentar e para viabilizar as sobras. Sob a liderança da Campotec, uma empresa dedicada à distribuição, comercialização e consultadoria de hortofrutícolas, a iniciativa juntou um consórcio de 24 entidades portuguesas, incluindo empresas da indústria agro-alimentar, instituições de ensino superior e de investigação.

O projecto Bioma procura vários tipos de solução para o desperdício alimentar Paulo Pimenta
Paulo Pimenta
Fotogaleria
O projecto Bioma procura vários tipos de solução para o desperdício alimentar Paulo Pimenta

Um futuro sem desperdícios é actual

A nível estrutural, o Bioma divide-se em cinco partes (ou produtos, processos e serviços, PPS). Complementando os avanços feitos no BIOsave, com especial enfoque na área de inovação, surge o BIOvalue, cuja preocupação principal é aproveitar as categorias secundárias de frescos. “Queremos encontrar formas de dar nova vida a desperdícios alimentares, seja criando novos alimentos ou reduzindo o nosso impacto no ambiente por utilização destes resíduos para fazer processos de compostagem”, explica Délio Raimundo, representante da Campotec, em conversa telefónica com o P3. Com este sistema, pretendem criar uma economia circular onde se possam “usar as frutas da campanha anterior para alimentar as frutas da campanha seguinte”, adianta. Quanto à criação de novos produtos, constam aperitivos, frutas desidratadas ou smoothies, feitos a partir do que não segue para os mercados ou das partes que não são usadas (como caules e folhas).

Nas restantes PPS, o foco é o digital. No BIOtrace, está a desenvolver-se um sistema de rastreabilidade para os alimentos: através de QR codes, o consumidor poderá verificar a origem, cadeia de valor e qualidade do produto, de forma a facilitar o processo de compra e torná-lo mais informado. Segue-se o siBIO, que se destaca pelo desenvolvimento de uma plataforma digital para a medição do índice de sustentabilidade das empresas. Délio Raimundo esclarece que se pretende incitar a implementação contínua de metas de sustentabilidade, de forma a reformar a indústria de uma forma geral. Por fim, para unir todas as vertentes, surge o BIOecossystem, que consiste numa plataforma para partilhar estes produtos e serviços desenvolvidos no Bioma.

“Temos o objectivo de levar isto para o panorama internacional, estar presentes em feiras e apresentar as soluções que forem aqui desenvolvidas”, remata o representante da Campotec. O foco primário é, ainda assim, alcançar a indústria nacional. A ambição é criar algo que possa revolucionar o funcionamento da indústria alimentar ou até entrar noutras áreas. Estima-se que até 2023 consigam ter os protótipos finalizados, prontos para apresentação e implementação.

Texto editado por Ana Maria Henriques

Sugerir correcção
Ler 1 comentários