As feridas invisíveis dos eventos potencialmente traumáticos
Ter conhecimento sobre as reacções físicas e a sua duração é tranquilizador e ajuda a entender o que podemos fazer para as reduzir, como quando precisamos procurar ajuda especializada.
Falamos muitas vezes em trauma e pessoas traumatizadas, especialmente quando vivemos num país com uma percentagem de 13% de pessoas que sofrem de algum tipo de transtorno mental, e quando estamos quase no topo do ranking europeu ao nível de consumo de antidepressivos. Porém continua a haver muita desinformação e inacção sobre os eventos que nos podem levar a adoecer, o que podemos fazer e quando devemos procurar ajuda especializada.
Consideramos eventos potencialmente traumáticos quando nos confrontam com a própria morte, quando são imprevisíveis e repentinos, quando há medo e sensação (real ou imaginária) de impotência, quando há imagens de destruição e caos, quando há feridos e/ou mortes.
Quando vivenciamos eventos com estas características, o sistema nervoso central dispara, para garantir que sobrevivemos. Uma vez descarregada a adrenalina e o cortisol e já em lugar de segurança, a pessoa pode manifestar uma série de sintomas físicos, emocionais, cognitivos referentes ao processo de assimilação emocional. E isto pode ser de facto assustador se não tivermos informação sobre o que se passa, “eu não era assim”, “eu não me reconheço”, “eu não confio em mim”... Ter conhecimento sobre as reacções físicas e a sua duração é tranquilizador e ajuda a entender o que podemos fazer para as reduzir, como quando precisamos procurar ajuda especializada.
Ao longo dos primeiros três meses após o evento traumático, podemos experimentar as seguintes reacções físicas:
- Reacção imediata e constante de estar em alarme,
- Insónia,
- Agitação,
- Distúrbios gastrointestinais,
- Dores musculares,
- Vertigens,
- Cansaço permanente ou bloqueio de reacção, paralisia.
Ao nível cognitivo e comportamental, também podemos verificar:
- Sensação de que está a ver um filme, que “isto é um sonho”,
- Esquecimento (parcial ou total),
- Apatia ou agitação,
- Raiva de si ou dos outros,
- Agressividade (nestes casos convém estar alerta, pois pode haver perigo de automutilação e/ou suicídio),
- Sentimentos de culpa e/ou vergonha são muito comuns, especialmente quando vemos pessoas em pior situação que nós.
- Comportamentos autodestrutivos (por exemplo: descurar a higiene, alimentação, autocuidado, aumento do consumo de drogas, álcool e tabaco).
Ao nível de reacções afectivas e relacionais é comum haver uma perda de confiança em geral e em especial no ser humano. Sendo comum experienciar:
- Perda de fé e esperança,
- Medo e mudança de crenças,
- Estado mais depressivo e triste (apatia, culpa e medo),
- Dificuldade no contacto e relações sociais e por isso maior tendência ao isolamento,
- Sensação de embotamento emocional “não sinto nada”,
- Alteração do comportamento sexual.
Todas estas reacções são comuns no período de assimilação (0-3 meses após o evento) e mostram que sofremos o impacto emocional no evento e, por isso, devemos adoptar alguns hábitos que podem ajudar a reequilibrar. Como? Não se auto medicar, manter e criar uma rotina (refeições, exercício, sono, lazer), evitar aumento de comportamentos de risco (álcool, tabaco, uso de violência), integrar espaços de partilha, integrar actividades comunitárias de apoio (adultos e adolescentes), ter fontes de informação fidedignas sobre o que está a acontecer (restringir ao essencial), conhecer a rede de prestação de serviços existente, definir alguns cenários de perspectivas de futuro.
Se com estas medidas simples os sintomas se mantiverem é um momento para procurar ajuda especializada e impedir que estas reacções de stress pós-traumático se instalem como trauma ou outra perturbação mental. Em psicoterapia o profissional avalia a condição de cada paciente e partilha estratégias ajustáveis ao caso individual. Se passou por um evento com estas características, pare, escute e peça ajuda se houver necessidade.
Psicóloga clínica, fundadora da Be Human