Cantos de macho

É um desejo egoísta, mas gostaria de um dia poder estar num “jogo grande” com a minha família de três gerações sem que o meu filho tenha de aprender a valiosa lição de que há um paneleiro em cada tripeiro, ou vice-versa. Preferia aproveitar o momento para lhe contar que o seu pai se forçou a gostar de futebol apenas por ciúme.

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Adriano Miranda

Nem sempre gostei de futebol. Na realidade, até ao Mundial de 1994 nunca percebi muito bem a euforia em torno daquele jogo cujas regras não entendia, e muito menos a excitação que gerava. Nesse Verão, porém, tudo mudou. Estávamos a passar férias em casa de uns amigos, e havia lá um rapaz da minha idade entusiasmadíssimo com um jogo qualquer desse campeonato do mundo. O meu pai, sempre severo na hora de elogiar, achou por bem comentar o grau de argúcia que aquele miúdo revelava ao analisar foras-de-jogo, faltas e coisas afins, de cujo significado eu andava bastante perdido. O meu pai estava extasiado, menos por um Maradona barrigudo do que perante o puto sabichão. Fiquei sentido. Dei por mim a ver o resto do mundial com olhar de lince amuado, procurando fixar os nomes dos jogadores e, finalmente, entender como é que funcionava a coisa, vingando-me da cumplicidade que me foi roubada. E assim comecei a gostar de futebol.

Bastantes anos depois, eu e o meu querido pai, já de cabelos grisalhos, decidimos ir ao estádio ver um desses “jogos grandes”. Levávamos um simples cachecol do nosso clube e partilhávamos aquela alegria que o futebol tinha rebuscado em nós. Ainda fora do recinto, uns quantos rufias abordaram o meu pai. Deram-lhe um pontapé e arrancaram-lhe o cachecol do pescoço. Não sou particularmente dado a ímpetos corajosos, mas agarrei-me àquele cachecol como uma lapa à rocha. Cinco marmanjos arrastaram-me pelo chão; não desisti, eles sim. E lá fiquei esparramado, com o estúpido troféu na mão, atónito. Entretanto, o meu pai queixava-se à polícia ali presente, que deu a entender que tínhamos sido nós a pormo-nos a jeito. Como banda sonora perfeita para a ocasião, um belo cântico se ia ouvindo, em crescendo: “Em cada tripeiro, há um paneleiro”. Já dentro do estádio, a ária repetia-se: “Em cada tripeiro, há um paneleiro”. Escusado será dizer que nunca mais fui a um derby e acabei por esquecer as edificantes palavras.

Um episódio recente, porém, reavivou-me a memória. O meu filho cirandava a televisão, enquanto eu via um “jogo grande”. Lá lhe ia explicando o jogo, não fosse mais tarde dar por mim a elogiar um outro puto, depois de ter desperdiçado uma loa ao meu. Foi então que o encantador cântico de novo se fez ouvir. Fiquei estarrecido. Tantos anos depois, a mesma porcaria. O tribalismo, o machismo, a homofobia, a violência, apesar de tanto discurso entretanto produzido, em palavras por vezes barbaramente fiscalizadas, encontravam ainda voz em milhares de gargantas. Em directo para todo o país.

Dir-me-ão: é uma brincadeira. É folclore. Não é. Pode ser circunscrito, mas este tipo de demonstrações são claros sinais civilizacionais – como corroboraria Cirilo, esse inesquecível patriarca russo. São ainda ecos de uma masculinidade tóxica que tanta destruição, interior e exterior, causa neste mundo e que ainda virá a tempo de contaminar a geração do meu filho. Leio tudo isso em tais grunhidos? Não serão antes uma catarse, uma forma de expurgar os demónios de cada macho alfa transviado da sua natureza sapiens? Pois esse hipotético adepto, purificado após tal hino, regressará a casa mais pacificado com a sua identidade tribal? Ficará disposto, agora sim, a tolerar “os cabrões dos tripeiros” e, por extensão, todas as tribos diferentes da sua, depois de vomitar a sua peçonha? Passará a abraçar identidades opostas à sua? Como por magia, passará a considerar que os “paneleiros”, os “maricas”, são, afinal, “homens a sério”, como ele, e dignos de respeito? Mas é só uma brincadeira. Uma forma inocente de passar o tempo. Se assim é, então o cântico cumpre dois fins inestimáveis: para além de um potencial mestre da tolerância, será uma óptima arma contra o tédio. Sugiro até que o passem a cantar nas escolas.

Mas não, palavras como essas nunca serão inocentes, quando proferidas em sociedade. E se são clichés ou perderam o conteúdo, mal de nós se nos habituarmos a elas. As palavras têm um contexto e uma intenção. Estou, aliás, convencido de que é este mesmo subjacente paradigma, cuspido desde o berço até à morte, que põe ditadores alfa como Putin a posar para as câmaras e a andar de tronco nu em cima do cavalo, arma em riste e ar de predador da Cochinchina, com vontade de invadir Constantinopla. Não sei qual é o equivalente russo para “paneleiro”, mas o candidato a melhor imperador do século XIX deve usá-lo com frequência.

É talvez também este paradigma que leva um certo actor norte-americano a agredir em directo um comediante, defendendo ao estalo a honra da “sua” mulher. Mas talvez esteja a levar longe demais o argumento. Voltando ao cântico. Acreditando que a lei nem sempre pode substituir costumes, posso apenas humildemente pedir aos eventuais leitores que costumam entoar a catártica canção que considerem trautear outra coisa. É um desejo egoísta, mas gostaria de um dia poder estar num desses “jogos grandes” com a minha família de três gerações sem que o meu filho tenha de aprender a valiosa lição de que há um paneleiro em cada tripeiro, ou vice-versa. Preferia aproveitar o momento para lhe contar que o seu pai se forçou a gostar de futebol apenas por ciúme. Chamem-me maricas.

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