“Tudo o que é arte tem de ir para o abrigo”: a Ucrânia corre a proteger o seu património cultural
As paredes dos museus estão vazias, as caves enchem-se de obras embaladas que talvez no futuro voltem a ver a luz do dia. Salvar arte é a segunda prioridade a seguir a salvar vidas porque o orgulho nacional também se funda na convicção de uma identidade cultural singular, dizem artistas e directores de museus da Ucrânia.
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Esvaziar um museu é uma tarefa gargantuesca, e era a ela que todos os funcionários do Museu Nacional Andrey Sheptytsky, em Lviv, se vinham dedicando há já uma semana quando a peça final – um retrato do patrono do museu – foi deposto, deixando nua a última das suas paredes.
Ihor Kozhan, o director da grande Pinacoteca situada mesmo em frente à Ópera de Lviv, explica a pressa. “Há um egomaníaco em Moscovo que não se importa de matar crianças, quanto mais de destruir arte. Se queremos que a nossa história e o nosso património sobrevivam, tudo o que é arte tem de ir para o abrigo”, diz.
Por toda a Ucrânia, artistas, galeristas, curadores e directores de museus estão desesperada mas cuidadosamente a remover, embalar e armazenar o volumoso espólio cultural do país, à medida que o assalto de Vladimir Putin se aproxima. Estátuas, vitrais e monumentos revestem-se de material à prova de estilhaços. Nas caves, os bunkers atravancam-se de pinturas.
Dado que os bombardeamentos russos têm para já atingido mais pesadamente a metade oriental do país, duas das cidades ucranianas mais ricas em património cultural, Lviv e Odessa, puderam ganhar tempo. Em Odessa, por exemplo, um grupo de voluntários passou dias a encher centenas de sacos de areia para proteger o monumento em honra do Duque de Richelieu, francês que foi um dos fundadores desta cosmopolita cidade portuária. Apenas a sua cabeça e o seu braço direito, estendido, permanecem descobertos.
Kiev e Kharkiv, as duas maiores cidades do país, foram atingidas logo no início da guerra e já sofreram perdas devastadoras.
As janelas do principal museu de arte de Kharkiv explodiram, sujeitando há já várias semanas as 25 mil peças do seu acervo às temperaturas geladas e à neve. Os teatros de ópera e de ballet da cidade foram muito bombardeados.
Um conjunto de 25 obras de uma das mais celebradas pintoras ucranianas, Maria Prymachenko, conhecida pela sua colorida representação do folclore e da vida rural do país, arderam quando os russos bombardearem o museu que as albergava numa cidade às portas de Kiev. Outros museus da capital foram apenas protegidos com material protector; os seus acervos continuam no interior dos edifícios porque aqueles que teriam podido tratar da evacuação dos bens já fugiram da cidade.
“Os centros das cidades estão seriamente danificados. Nalguns deles há sítios e monumentos que remontam ao século XI”, disse na semana passada Lazare Eloundou, director do programa das Nações Unidas para o Património Mundial. “É toda uma vida cultural que está em risco de desaparecer.”
A destruição deliberada do património de um país ou de uma cultura é considerada um crime de guerra, mas a UNESCO ainda não cancelou a sua próxima cimeira, que até informação em contrário terá lugar na Rússia.
Numa altura em que as tropas russas tentam cercar Odessa, o Museu de Belas Artes local enrola-se em arame farpado. “Acreditem, isto também me parece muito selvagem”, declara Kirill Lipatov, director do departamento de ciência da instituição.
Tal como nos museus de Lviv, as paredes estão agora despidas, diz Lipatov, recusando-se a revelar se as peças mais valiosas foram levadas para fora da cidade. Algumas estão pintadas nas próprias dependências deste palácio ornamentado edificado na década de 1820 e nunca de lá saíram – incluindo obras icónicas do século XIX de artistas como Ivan Aivazovsky e Ilya Repin.
“O primeiro pensamento que me veio à cabeça é que um museu ucraniano está a proteger obras-primas russas de uma agressão russa”, comenta Lipatov. “Isto dá-me um nó na cabeça.”
Apesar da incredulidade que a actual situação lhes suscita, estes responsáveis lembram que a sua odisseia não é de todo estranha à história do país. Ao longo do último século, a Ucrânia viu-se por várias vezes destituída do seu património artístico por invasores.
Após a invasão e a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, dezenas de obras até então conservadas na península foram transferidas para museus russos. Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de peças foram levadas pelos soldados nazis para a Alemanha. Um retrato de Yakov Galkin, o director que evacuou o Museu de Belas Artes de Odessa nessa ocasião, está hoje pendurado no gabinete de Lipatov.
Salvar obras de arte é a segunda prioridade a seguir a salvar vidas, dizem muitos dos entrevistados, porque o orgulho dos ucranianos na sua cultura é uma grande fonte de inspiração para a resistência do país à invasão. Putin deixou bem claro que considera a Ucrânia parte da grande Rússia, uma proclamação que os artistas ucranianos dizem negar o património singular do país.
“A cada invasão, é inevitável alguma perda de cultura”, nota Taras Voznyak, director da Galeria Nacional de Arte de Lviv. “Putin sabe que sem arte, sem a sua história, a Ucrânia terá uma identidade mais frágil. É esse o único objectivo desta Guerra: apagar-nos e assimilar-nos à sua população de zombies criptofascistas.”
"Ninguém é famoso, ninguém é invejoso"
Mas se os museus têm muitas vezes os seus próprios abrigos, ou redes mais vastas na Europa com as quais podem contar para albergar parte dos seus acervos, as galerias e os artistas independentes apenas podem confiar uns nos outros.
Um dos esforços mais bem-sucedidos para proteger a arte contemporânea na Ucrânia está em marcha na cidade ocidental de Ivano-Frankivsk, onde um colectivo de artistas converteu um café subterrâneo num bunker. Trabalhando dia e noite com uma rede de camionistas, conseguiram resguardar aqui trabalhos de mais de 30 artistas (de delicadas colagens a esculturas suspensas e pinturas gigantes de dois por quatro metros) de todo o país. A 11 artistas que tiveram de fugir das suas casas, foram por sua vez oferecidas residências, para que possam continuar a produzir arte durante a guerra.
“Muitos dos nossos artistas estão a questionar o seu papel – tipo, ‘eu não deveria pegar numa arma?’ Será que a arte, enquanto arma, actua com demasiada lentidão?”, pergunta Anna Potyomkina, curadora de 25 anos que integra este colectivo. “Mas criar arte quando a Rússia está a bombardear museus e estúdios é uma parte muito importante da resistência.”
Descontadas as pilhas de obras embrulhadas em plástico com bolhas que esperam a sua vez de ser levadas para o abrigo, o espaço do colectivo está cheio de artefactos familiares: mobília descontraída, computadores Apple, uma prateleira dedicada a livros sobre políticas de género e feminismo, paredes cobertas com post-its e fotos em que os membros do grupo e os seus amigos parecem vistosos e divertidos antes da guerra.
Yaryna Shumska, uma pintora e performer de Lviv que se descreve no seu site como uma cronista da “memória dos objectos e das suas histórias invisíveis”, adoraria transportar as suas peças mais adoradas para Ivano-Frankivsk, mas teme que possam danificar-se no processo. Se tiver de fugir de Lviv, provavelmente deixará as suas peças onde estão, na esperança de que as bombas caiam noutro sítio.
“O estúdio de um amigo meu em Kharkiv foi bombardeado e agora só resta uma catástrofe vazia”, conta Shumska no seu próprio estúdio, onde se amontoam enormes pinturas sobre tela, algumas das quais dedicadas ao seu marido, que morreu em Outubro. “É uma pergunta impossível de fazermos a nós próprios: posso despedir-me do meu trabalho, que é quase uma extensão do meu corpo?”.
Por estes dias, a sobrevivência de muita da arte ucraniana depende, em última instância, do local onde as bombas vão cair.
Em Odessa, Lipatov lembra que o Museu de Belas Artes, uma instituição com 123 anos, é tão delicado que seguramente arderá por completo se for atingido por uma explosão.
Também o bunker em Ivano-Frankivsk não é à prova de bomba. Caso venha a ser directamente atingido, as centenas de peças que agora ali foram armazenadas ficarão soterradas; mesmo no melhor dos cenários, apenas algumas serão poupadas. Na semana passada, a Rússia bombardeou o aeroporto da cidade.
“Neste momento, nada mais podemos fazer”, diz Potyomkina. “Neste momento, ninguém é famoso, ninguém é invejoso, nenhum artista é mais importante do que outro. Todas as rivalidades e crises existenciais estão em stand-by. Temos de fazer tudo o que podemos agora, ou corremos o risco de perder tudo.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post