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- Especial: Guerra na Ucrânia
Aprendi a ler o alfabeto cirílico com a Valentyna. Conhecemo-nos no SVE (Serviço de Voluntariado Europeu) que fizemos juntas em Varsóvia. O cirílico parecia um alfabeto secreto em que bastava saber o código para desvendar a mensagem. Isto quando lia palavras que soam iguais ao inglês ou português, como futebol (футбол) e funicular (фунікулер). Ou palavras iguais ao polaco, que eu tinha aprendido a um nível básico no ano de SVE, como apteka (аптека é farmácia).
Quando o SVE acabou, viajei com a Valentyna até Kiev, onde ficámos com amigos dela num subúrbio de prédios residenciais. Uma vez ao voltar do centro, já de noite, perdemo-nos naquela floresta organizada de betão. Adorei Kiev. Fazia-me lembrar o Porto, ou Lisboa, com o rio, a sua colina e horizontes largos. Uma ilha no meio do rio com a própria paragem de metro. Belos edifícios antigos. Num parque com vistas, à noite, um rádio velho a dar música e um grupo a dançar tango. As estações de metro com senhoras dentro de cabinas, a vigiar as longuíssimas escadas rolantes, em cada patamar.
Quando atravessámos o país de comboio, impressionou-me a floresta densa, muito junto às vias férreas. E a Valentyna dizia, apontando para as casas com hortas: aqui não vais ver jardins sem hortas, sem pelo menos umas beterrabas. Foi com ela que aprendi sobre o Holodomor, a fome genocida lançada pelo Estaline nos anos 30 contra os agricultores da Ucrânia e de outras zonas da União Soviética, onde milhões morreram à fome.
A Valentyna é das pessoas mais generosas que conheço, daquela generosidade que deixa o nosso coração a transbordar. Depois de morar com a Vala por nove meses no SVE, ela passou a ser casa para mim. Conheci a família dela, a legendária avó, o pai, a mãe, a irmã. Amigos. E agora a casa dela e deles está a ser selvaticamente agredida, bombardeada.
Agora percebo melhor o que têm sentido amigos meus da Síria durante essa guerra interminável. O Tarek contou-me que, no início, ele estava em Barcelona a fazer doutoramento, e não conseguia deixar de seguir as notícias. Era muito, muito difícil.
A discrepância na cobertura, na preocupação, na mobilização faz-me encarar o racismo latente em nós e nos media. Tanto na forma como contam o que se passa, como nas histórias que nos chegam. Quantos filmes vimos feitos na Síria, na Gâmbia ou mesmo em Marrocos? É tão mais fácil desumanizar quando tudo o que chega até nós são representações estereotipadas que não reflectem a humanidade e pluralidade nos “outros”, que são tal e qual como nós.
Como escreveu o Gustavo Carona, precisamos muito de guardar esta sensação próxima. “De olhar o resto do mundo com a mesma atenção”. Enfrentar dentro de nós o facto que as pessoas que atravessam o Mediterrâneo em barcos de borracha merecem a mesma preocupação, a mesma empatia. Na Palestina, no Iémen, na Síria. Em demasiados sítios. Uma rua bombardeada é igual em todo o lado. Prédios sem janelas, destroços por todo o lado. Isso não acontece por o povo merecer. Por não ser “civilizado” ou qualquer outra desculpa inconsciente que esteja no âmago da nossa indiferença. Na verdade, quem destrói é que é fraco. É tão fácil destruir em segundos tudo o que levou anos, décadas, séculos a compor-se. Depois de um bombardeamento, tudo parece igual.
Também na Ucrânia vai haver mais um pós-guerra. Quando houver, quero finalmente voltar lá. Ir a Lviv, cidade que sem sair do sítio já fez parte de vários impérios nos últimos 300 anos. Já foi polaco-lituana, austro-húngara, soviética e agora é ucraniana. Ir a Odessa, essa cidade-porto lendária, com uma forte comunidade judaica na margem do Mar Negro. E a Kharkiv também, que dizem ser cidade dos poetas e universidades, com muitos estudantes estrangeiros.
Outra coisa que ficou muito clara para mim é o quanto a sobrevivência das ditaduras está dependente da mentira, do engano constante, do controlo da comunicação. E como o escrutínio, e a imprensa livre e independente, são o oxigénio das democracias.
Por muito más que sejam as nossas democracias, por muito que haja por cumprir, que há. Por muito que precisemos ainda de lutar para haver muito mais justiça e transparência e equidade, que riqueza é podermos dizer isto livremente, e organizarmo-nos sem medo.
A Ucrânia está a lutar por esta coisa que se tornou banal para nós. Ser uma democracia. Não ter um presidente-fantoche. Não ter regras draconianas de opressão da sociedade civil como na Rússia. O Zelensky disse: “Não temos nada a perder senão a nossa liberdade e dignidade.” Não quero imaginar outra resolução para isto senão a paz, independência e democracia da Ucrânia. É inevitável, mesmo que demore, e que o tempo roubado seja insuportável. Como é sempre em guerras e ocupações.
Com o coração na Ucrânia, pelo que a Europa de Leste significa para mim de memórias de gratidão, casa e curiosidade, tento comprometer-me a sentir mais isso pelo resto do mundo. Mundo que está cheio de casas, generosidade e sabedoria em cada canto.
Com o coração na Ucrânia, tento comprometer-me a dar muito mais valor à nossa democracia, à nossa paz. Que usemos muito mais o poder do escrutínio, de assembleia, de exigir transparência e muito mais abertura à participação. Que usemos muito mais o direito de participarmos na construção do nosso país e dos nossos territórios, de forma a torná-los mais justos, para com as pessoas e a Terra. E à prova do clima do século XXI. Em paz. E em liberdade.