Aperture Desk Job testa sanitas para demonstrar o Steam Deck
A obra da Valve tem um sentido de humor eficaz, uma atmosfera rica, a caracterização das personagens é memorável e é grátis. Leva-nos até ao universo de Portal e deixa-nos com vontade de por lá continuar.
Aperture Desk Job tem cumplicidade, mas nunca se esquece que decorre no universo de uma das mais adoradas séries de videojogos. Terminado, ficam momentaneamente saciadas as saudades antes de querermos mais da Valve e de Portal; antes de percebermos que esta qualidade só torna a sua curta longevidade ainda mais penosa.
São precisos aproximadamente 30 minutos para chegar ao final do jogo que foi criado pela Valve para demonstrar os controlos do Steam Deck, o dispositivo portátil que chegou recentemente ao mercado. Contudo, qualquer pessoa pode experimentar Aperture Desk Job, desde que tenha um comando (qualquer) ligado ao computador e uma conta Steam — o jogo é gratuito.
Somos contratados pela Aperture Science como Inspector de Produto para testar sanitas pressionando diferentes botões, exames que passam por encher a sanita com água, testar a resistência do assento, o esguicho da água e a descarga. Seria um trabalho rotineiro se não fosse uma mudança súbita apresentada por Grady (Nate Bargatze), personagem que nos explica os processos básicos e que tem uma ideia brilhante.
Um acidente deposita algumas balas no autoclismo da sanita e nasce um novo conceito — uma sanita que funciona também como uma peça de artilharia e que Grady, orgulhoso, quer apresentar directamente a Cave Johnson (J.K. Simmons), fundador da empresa. O que no papel podia ser uma piada estapafúrdia, em Aperture Desk Job é a desculpa perfeita para introduzir novos controlos — além dos botões de rosto, usarão também os gatilhos do comando, por exemplo — e para deixar a qualidade da escrita brilhar.
A jogabilidade nunca é complicada, mas encontramos satisfação em testar o que cada variante da sanita modificada consegue fazer durante a execução de um plano que não surpreende quem achar que tem tudo para correr mal. Há um rasto de destruição inconsequente até aos segundos finais, mas que é pálido em comparação com a memória da caracterização de Grady e Johnson.
Mesmo quando a obra pede o uso de funcionalidades que um comando tradicional poderá não ter, como um microfone, controlos giroscópicos, ou o equivalente aos botões que estão na parte traseira do Steam Deck, nunca houve qualquer incompatibilidade. Depois de tomada a decisão de não a lançar como um exclusivo, a produtora soube adaptar estes detalhes em prol de uma experiência completa.
Num determinado momento, há um salto temporal de seis meses e quem estiver atento repara que foram inspeccionadas 278.100 sanitas. Noutro trecho, estamos numa cela, mas a mesa de trabalho continua presente como se fosse uma segunda pele. E num dos segmentos mais agitados, Grady narra a sua vontade quase filosófica de querer uma tatuagem.
A Valve usa uma escrita com consequências — Half-Life, por exemplo, continua a ser um dos exemplos maiores de como um arco narrativo superior pode definir um jogo, uma série ou um género. E aqui há o pulmão e o ritmo para nos fazer sorrir sem nunca sentirmos que a inteligência está a ser descartada. Quando uma das personagens fica presa na sanita e pede ajuda, se activarmos o jacto de água, a sua resposta é “não, agora estou simplesmente molhado”. Curto e directo, altamente eficaz também pela entrega desarmante de Bargatze.
Os cenários são sempre controlados, ou seja, o jogo apresenta sempre vistas curtas, o que permite uma excelente qualidade das texturas que consequentemente enaltecem a atmosfera de Aperture Desk Job. O lado mecânico dos testes, a forma como os botões reagem, a animação das personagens, até mesmo a fonte usada nos painéis, tudo foi cuidadosamente encenado pela produtora.
Isto resulta tanto na escala maior do novelo de tubos que se estendem até os perdermos de vista, mas também na minúcia dos detalhes que estão presentes, por exemplo, nas costas da sanita — testar um objecto com poder bélico apontado para nós é uma terrível ideia devidamente anotada por Grady, tentando assegurar que tudo é seguro. Não, não é nem nunca foi.
Em nenhum momento é sentido que estamos a jogar um pedaço de publicidade descaracterizada para promover o Steam Deck, sendo um videojogo que funciona perfeitamente sem esse hardware. É um pedaço de software que serve também para demonstrar e apresentar os comandos aos jogadores que estão agora a receber o computador portátil, sentindo-se a clara vontade de a produtora incluir referências e conhecimento de Portal.
E funciona. A Valve tem um lugar de destaque graças à loja digital Steam e tem algo a dizer no que a hardware diz respeito. O Steam Deck é um caso de sucesso: com preços entre os 412€ e os 679€, quem o reservar agora só o receberá após o segundo trimestre. Depois de Half-Life: Alyx ter chegado à Realidade Virtual em 2020, Aperture Desk Job precisa de apenas 30 minutos para nos relembrar o que nunca esquecemos: a empresa de Gabe Newell é também uma excelente criadora de videojogos.