O estado da educação no mundo dos media globais
A aprendizagem deve continuar a ser feita nos inúmeros media: o velho e insubstituível livro (em ecrã ou papel), a canção, o filme, a série... Seja em que ecrã for e com que tecnologia for. Mas ela só será completa se for partilhada em comunidade, nas praças onde nos encontramos.
Fui professor de liceu (de Português) durante sete anos, na segunda metade dos anos oitenta e início dos anos noventa, em diversas escolas públicas da área de Lisboa, do centro e da periferia, grandes e pequenas, mais socialmente problemáticas ou mais privilegiadas.
Gostei muito de ser professor, procurei sempre dar o meu melhor e fazer das aulas o centro dessa partilha que é a aprendizagem escolar. Mas fiquei sempre com a sensação que o melhor era o que dessas aulas era inspiração para outras aprendizagens, para outras partilhas que tinham a ver com os percursos e as escolhas de cada um. Que o melhor era essa motivação que dali deveria sair para cada um aprender o que só a si e ao seu futuro diziam respeito. E que isso não era pedir pouco das aulas, era pedir muito, era pedir o melhor que elas deviam poder dar.
Era como se as aulas fossem o epicentro de pequenos tremores de terra de que não nos apercebêssemos imediatamente, mas apenas quando, mais tarde, às vezes anos depois, sentíssemos as suas réplicas.
Pensei muito nisso quando era professor: o que vai ficar, para cada um destes rapazes e raparigas, de tudo o que aqui estamos a falar, de todos estes programas, de todos estes conteúdos curriculares obrigatórios que umas vezes eles parecem seguir atentos ou mais distraídos, outras vezes parecem nem ouvir sequer de passagem?
O que ficou em mim, de tudo o que também no meu tempo os professores se esforçaram por transmitir? Muito, pouco, tudo, nada?
O que sabemos é que não poderemos saber nunca ao certo o que de tanto que nas aulas é dado nos fica presente pelo futuro fora.
O sismógrafo tardio que mede as ondas de choque dos pequenos tremores de terra que ocorreram em momentos incertos nas nossas aulas passadas só se revela na última pétala do malmequer muito depois, anos depois.
Hoje, como secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media não deixo nunca de pensar na forma como a educação é influenciada, condicionada e desafiada, como nunca antes, pelos media contemporâneos.
Esta reflexão torna-se particularmente pertinente no contexto do rescaldo desta pandemia e dos desafios que ela trouxe para o sistema de ensino num mundo dominado por tecnologias que vieram mudar completamente as nossas formas de aprendizagem, comunicação e sociabilização.
A pandemia veio tirar-nos aquilo que é o essencial na criação de comunidade: a presença. A presença do outro, dos outros. O confronto com os outros, o choque da diferença e a revelação da semelhança, a proximidade, a cumplicidade e a empatia – tudo isto e o que daqui nos faz crescer e sermos nós, cada um de nós – em presença, de corpo inteiro, uns com os outros.
É verdade que o ensino à distância, o recurso aos media audiovisuais e as tecnologias que nos permitem estar em grupos de trabalho ou aulas, em conjunto, cada um ligado a partir de locais distantes, vieram permitir o contacto e a aprendizagem que se não fosse por esta via não existiriam sequer.
Nós somos seres gregários e as comunidades tornam-nos maiores.
Aprender é um acto irremediavelmente individual e um caminho que cada um faz caminhando por si e consigo. Mas sem os outros somos incompletos.
Sem amor somos incompletos, sem amizade somos incompletos, sem comunidade somos incompletos.
Podemos ter o conhecimento sozinhos, mas não temos a sabedoria sem sermos com os outros. O conhecimento sem empatia não é sabedoria.
E essa sabedoria não vem dos ecrãs, da distância e do isolamento: vem de estar com os outros.
Não somos sem estarmos. Sem essa forma impura, imperfeita e errática de sermos que é estarmos. Estarmos uns com os outros como crianças a brincar. Aos encontrões, aos empurrões, aos abraços e aos beijos, no meio de gritaria e segredos, a jogar à apanhada e às escondidas, aos saltos de alegria no meio do pátio e abrigados tristes atrás das árvores, a ouvir coisas pela primeira vez e a ver com os amigos o que só nós tínhamos visto.
É assim pela vida fora: crianças a brincar. Não há outra forma de aprendizagem.
Passada esta pandemia, ou pelo menos passada a sua fase de necessário isolamento, vamos voltando à vida como ela era, sabendo que a vida nunca volta a ser o que foi.
Carregamos o fantasma deste tempo e o medo de que ele regresse e nos leve de novo a não podermos estar juntos.
Não estarmos em comunidade fragiliza os que de nós estão mais vulneráveis, acentua as desigualdades, aumenta o risco do abandono escolar. A distância esconde e extrema a desigualdade. A distância desprotege mais os desprotegidos. A comunidade só é solidária se não abandonar os solitários. A comunidade só é forte se nos pudermos – literalmente – abraçar.
Contudo, não podemos deixar de pensar que o isolamento a que a pandemia nos obrigou não foi senão um acelerador, um acelerador hiperbólico e distópico daquilo que mais lentamente tem estado a acontecer nas sociedades.
Falo do paradoxo, inúmeras vezes referido, de vivermos num tempo em que estamos mais ligados do que nunca – por meios de transporte e comunicação, todo o tipo de redes, de ligações e hiperligações e, simultaneamente, de estarmos mais isolados do que nunca.
Um tempo em que podemos pertencer a mais e mais comunidades – próximas, distantes, misturadas ou isoladas, cruzadas ou marginalizadas, opostas ou sobrepostas – mas em que cada vez mais o fazemos de forma virtual, sem contacto físico ou só com contactos esporádicos e fugidios.
Uma tendência que se manifesta quer nos encontros amorosos ou nos das afinidades electivas, nas amizades, nos ritos de passagem ou de partilha, de partilha social ou cultural.
De um ponto de vista literário ou filosófico, podemos pensar que a vida em comunidade sempre foi uma coexistência de inúmeras solidões. Improvisadas coreografias colectivas das divagações de transeuntes solitários.
Só que hoje, mais do que nunca, as coreografias não se fazem na geografia física dos lugares do mundo, mas sim nos não-lugares do hiperespaço.
Vai passando o tempo em que nos encontrávamos nas ágoras que foram sendo as praças, os mercados, os parques, os teatros, os cafés, as livrarias...
Hoje, quando nos encontramos nos eventos, não é tanto para estar com os outros mas para emergirmos numa experiência colectiva da qual os outros são figurantes ou avatares.
Mesmo os órgãos de comunicação social à volta dos quais nos reuníamos ainda que não presencialmente – jornais, rádios, estações de televisão - perdem hoje, cada vez mais o poder de ser esse centro.
Antigamente dizíamos “viste aquilo ontem?”, e todos sabiam do que estávamos a falar. Hoje há uma diversidade dispersa que nos enriquece, mas que traz um risco de nos perdermos uns dos outros – se não tivermos mapas ou GPS que nos orientem.
Só que os GPS contemporâneos são geridos por algoritmos feitos para nos levar aonde “pensam” que queremos ir, e não onde outros diferentes de nós possam estar. Apresentam-nos ao que já sabemos que vamos gostar e ao que vem confirmar, reforçar, proclamar aquilo em que acreditamos.
São mapas para o conhecido, não para o desconhecido. Posicionam-nos globalmente como cidadãos locais que não querem saber do resto do mundo, fechados na sua aldeia mental, avessos ao cosmopolitismo, à demanda errante e à deriva nómada que levam à descoberta do que não conhecemos e nos enriquecerá, ao acaso e ao encontro com as diferenças.
Não devemos esquecer que a cura para os nacionalismos chauvinistas é viajar, sair da nossa aldeia paroquial. Procurar outros centros.
Os centros existem cada vez menos. Não se sustentam, perdem solidez na exacta medida em que vão sendo esquecidos. Porque os centros são feitos de memória e o culto da memória vai desaparecendo. Tudo é cada vez mais só o presente. Não vivemos já numa modernidade líquida, mas num permanente presente gasoso. Sem passado e sem futuro. Para os mais novos é toda uma vida em bolhas. Bolhas como bolas de sabão que facilmente implodem, ploc.
Ou ainda não? Será que também não é tarde demais para esta outra alteração climática? Para esta alteração das condições de relacionamento humano – as suas temperaturas, as suas marés, os seus ventos. Será que não é tarde demais também para alterar a ocorrência destes relacionamentos humanos extremos? Será?
A cultura audiovisual, nas suas múltiplas formas, é hoje dominante. Esmagadoramente dominante. Mas dentro do omnipresente mundo da cultura audiovisual – ou, mais exactamente, do entretenimento audiovisual – há um crescente domínio de uns géneros face ao declínio de outros.
Não é só o modelo televisivo tradicional ter vindo a ser substituído por um modelo de rede ou redes, da Internet. É um mundo em que os filmes, as séries e os seus tempos e modos narrativos têm vindo a ser maioritariamente substituídos, ou pelo menos muito influenciados e colonizados por jogos, pequenos vídeos, memes - e pelos tempos e modos narrativos destes.
Isto é muito evidente (e cada vez mais, de forma acelerada) nos mais jovens.
Não é que as histórias, os mitos, tenham deixado de ser o que nos une e mobiliza como comunidade. Continuamos a encontrarmo-nos nas histórias em que acreditamos.
O que acontece é que a maneira de contar essas histórias está a mudar vertiginosamente. Não é só a forma de as contar. É a forma de as ouvir, de as receber, de as partilhar - o contexto em que as recebemos. Em última análise, pode ser que as próprias histórias, que têm constituído a estrutura central das nossas comunidades, estejam a ficar radicalmente diferentes. Ou, pura e simplesmente, desestruturadas.
A literatura deixou de ser a forma maioritária de contar histórias. Apesar de se continuarem a publicar muitíssimos livros, há menos gente a lê-los. Ou melhor, há cada vez mais gente que prefere trocar o tempo de leitura de livros por um tempo de visionamento de vídeos ou de prática de jogos.
Estudos recentes demonstram que o pensamento abstracto está a perder terreno para outro tipo de pensamento ou percepção da realidade.
Há cenários, sem dúvida inquietantes, que descrevem as próximas gerações como as primeiras que poderão vir a ter um QI inferior às dos seus pais, bem como menos capacidade imaginativa e menos memória (da mesma maneira que ficarão progressivamente mais dependentes de máquinas e de inteligência artificial).
Não partilho deste pessimismo. Acredito que estamos, de forma complexa, a passar para um novo modelo, social e civilizacional. Como antes aconteceu com o aparecimento da escrita ou, séculos depois, com a invenção da imprensa.
O presente é um mundo de algoritmos, um território dominado por grandes corporações multinacionais, ainda desregulado.
O modelo dos media tradicionais, dos grandes grupos de comunicação social e dos múltiplos órgãos de comunicação social independentes, regionais ou locais – jornais, revistas, rádios e televisões – está em convulsão. O modelo de negócio, de consumo e de recepção mudou ou está mesmo em vias de extinção e, sem estes mecanismos de regulação ou autorregulação do sistema, emanados das sociedades civis democráticas e liberais, que são os media – e, sobretudo, sem a existência de jornalismo - são as próprias democracias que estão em perigo.
Caminhamos para uma época dominada por algoritmos e inteligência artificial, ameaçada por fake news e desinformação geral e, em breve, pelas deep fake que virão trazer mais uma revolução na forma como vamos percepcionar o mundo através da tecnologia das redes, tornando cada vez mais difícil distinguir o que é falso do que é verdadeiro, o que é verdade e o que é ilusão.
Será um universo de múltiplos ecrãs, omnipresentes, desde logo em próteses oculares que nos ligarão a um mundo de realidade aumentada e realidade virtual, o já chamado metaverso, que se tornará habitat natural das futuras gerações de nativos digitais.
Neste mundo futuro já presente vamos precisar – como sempre – de histórias, das histórias que deem sentido – ou sentidos – à nossa vida.
Viveremos, hoje como no passado, num mundo simultaneamente físico, onde habitamos, onde nos deslocamos, onde comemos, onde dormimos – as nossas cidades, e os seus arredores; mas igualmente viveremos no mundo mental, das ideias e das ficções onde tal como hoje vivemos - nas ficções em que acreditamos e na elaboração racional comprovada, partilhada e desejavelmente universal que é a ciência com que explicamos esse mundo em que vivemos.
Um mundo complexo de redes múltiplas que ligarão os habitantes do planeta e simultaneamente os poderão tornar menos comunitários.
Na mesma proporção em que toda a informação e ficção está cada vez mais acessível num qualquer ecrã à distância de um clique – sejam filmes, séries, jogos ou notícias, informação ou comunicação básica; de igual modo nunca estivemos tão fechados em nós próprios e nas nossas extensões biónicas de ligação às redes, em crescente encapsulamento, ensimesmados.
O risco essencial é o da perda da empatia, que é o fundamento do que nos une ao Outro. Não há algoritmo para a empatia. E sem empatia não há comunidade.
É uma questão de civilização, de urbanidade e de urbanismo. Não podemos correr o risco de perder os locais de encontro com os outros, as ágoras.
A política para o cinema, audiovisual e media é uma extensão da política de urbanismo e das cidades, da vida em comunidade.
Por mais ecrãs e formas de ver imediatas que nos liguem ao mundo, é fundamental não perder os rituais de relação comunitária presenciais: a vida ao redor das ágoras - salas de teatro, cinemas, exposições, livrarias, cafés, jardins e parques...
É igualmente decisivo recuperar o papel e o prestígio dos mediadores: professores, jornalistas, políticos...
Tal como no meu tempo de menino e jovem, a aprendizagem deve ser feita nos inúmeros media: o velho e insubstituível livro (em ecrã ou papel), a canção, o filme, a série... Seja em que ecrã for e com que tecnologia for. Mas ela só será completa se for partilhada em comunidade nas praças onde nos encontramos, corpo a corpo, nos locais da nossa geografia particular e comum.
E, no centro das nossas comunidades – nas nossas escolas, em todos os espaços da escola. E, no centro das nossas escolas – nas aulas.
O coração da nossa aprendizagem continuará a ser o plural coração das histórias - a forma que os humanos encontraram de lidar com o enigma do Tempo, a matéria de que somos feitos. Histórias que continuarão a ser contadas e escutadas, para unirem aqueles que nelas acreditam.
E porque vamos precisar, mais do que nunca, de ciência e informação para nos salvar, vai ser preciso, mais que nunca, distinguir as histórias que são verdadeiras e as histórias que são mentira – quando estamos a falar de estarmos informados.
E porque vamos precisar, tanto como sempre, de ficção e arte para nos salvar, vai ser preciso, mais que nunca, ter cada vez melhores e mais variadas histórias e arte para nos inspirar e dar sentido às nossas vidas – quando estamos a falar de sermos melhor comunidade.
Nada de tudo isto fará qualquer sentido se não o fizermos com os outros, lado a lado, com o mesmo entusiasmo com que em crianças e jovens partilhávamos os cromos, as revistas de banda desenhada, as histórias que nos faziam vibrar e sonhar - no pátio do recreio, nas brincadeiras, a caminho de casa, nos desvios que fazíamos até lá voltar.
Versão condensada do texto incluído no Relatório Estado da Educação 2020 (publicado em Novembro de 2021)