“Nascemos numa Ucrânia independente e queremos continuar assim.” O testemunho de Maryna, 23 anos, em Kiev
Aos 23 anos, Maryna Ohanesian acordou com o seu país, a Ucrânia, em guerra. Fala, ao P3, sobre as malas que já estavam prontas, o medo de perder tudo e como tentou, nas últimas semanas, apreciar “as coisas simples” do dia-a-dia. Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de uma entrevista.
“Hoje acordei duas vezes à noite sem motivo. Verifiquei a hora: era muito cedo para me levantar, por isso voltei a dormir. À terceira vez que acordei, olhei para o meu telefone e a primeira coisa que vi não foram as horas. Li as palavras que todos tínhamos medo de ler ou de ouvir. ‘A guerra começou.’
Sabíamos que havia a possibilidade de chegarmos a esta situação, mas todos esperávamos, até ao fim, que não acontecesse. No início, quando vi todas as notificações dos meus amigos e dos órgãos de comunicação social pela manhã, pensava que ainda estava a dormir. Convenci-me a mim mesma de que só precisava de acordar e de que tudo estaria bem.
Como já recebíamos ameaças há algum tempo, alguns de nós já tinham as malas prontas em caso de emergência. Eu e o meu colega de casa comprámos comida enlatada e kits de primeiros socorros. Quando ouvimos o som das explosões e das sirenes em Kiev, corremos para o abrigo antiaéreo mais próximo. Corremos com um cronómetro: demorámos cinco minutos e 28 segundos para lá chegar. Agora já voltámos para o nosso apartamento, mas estamos prontos para voltar ao abrigo a qualquer momento.
A raiva de sair e o medo de ficar
Se já pensei deixar a Ucrânia? Claro que sim. Mas quando vi, da minha janela, as pessoas a fugir das suas casas com as malas, com os seus animais de estimação, senti raiva. Não por eles, mas por esta situação que leva a que as pessoas, por todo o país, já não se sintam mais seguras. Agora, já não penso deixar a Ucrânia. Talvez mude de ideias amanhã, talvez não, mas agora a raiva acaba por ser mais forte do que o medo.
Eu quero ajudar o meu país da maneira que conseguir. Durante todos estes anos de independência, fomos florescendo lentamente, mudando e desenvolvendo a partir de dentro — e isso é comprovado pelo facto de a Rússia não querer abrir mão de nós. Sempre tentei fazer o meu melhor para mudar a sociedade ucraniana, como activista e como artista, porque tenho esperança no nosso futuro e não acho justo que todo o esforço, todas as nossas vitórias e conquistas, juntamente com os erros e lições, sejam em vão. Devemos provar que somos diferentes e que ficaremos de pé para proteger a nossa liberdade.
Há muitos sentimentos à nossa volta e, para ser honesta, dentro de mim também. Vai do medo, exaustão e pânico ao amor, união e esperança. Tenho mudanças de humor de estar a chorar e depois ficar calma. Mas, de alguma forma, sinto-me optimista. Sinto que estamos perante um enorme ponto de transformação sem volta. Vejo as pessoas nas ruas a ajudarem-se umas às outras… Vejo as notícias, as redes sociais e reparo em como tudo isto nos uniu.
É triste ter de passar por isto para construir um sentimento colectivo, mas nada une melhor as pessoas do que o cuidado e o amor. Nos últimos dias arrecadámos fundos para o nosso Exército. Vejo pessoas de todo o mundo a mostrarem apoio político, financeiro e moral. Sinto que não estou sozinha. Sinto que não estamos sozinhos.
A nossa nação está cansada, mas não vai desistir
Tenho apenas 23 anos e não acho justo para a nossa geração ter de lidar com os problemas das pessoas mais velhas que estão no poder. Tem sido assim há anos: a Rússia invadiu a Ucrânia há muitos anos, e é difícil viver, dia após dia, a sentir a dor que outros cidadãos têm em relação ao seu próprio país. Para algumas nações, ao longo da história, ser ucraniano significava que poderíamos ser silenciados, tratados como seres humanos inferiores. Mas isso não é verdade: mantivemos a nossa cultura com orgulho, mesmo quando tentaram enterrá-la. E o que vejo agora é que a nossa nação está cansada, mas não vai desistir. Assim como nunca o fizemos.
É devastador ouvir das gerações mais velhas que isto pode, na verdade, ser bom para nós (sim, isto acontece!). Mas se continuarmos apenas a reclamar, nada vai mudar — e seremos encarados, pelas próximas gerações, como os responsáveis pela merda que está a acontecer.
Talvez seja só na minha bolha pessoal, mas vejo muitos jovens entusiasmados e prontos para responder aos ataques. Porque nascemos numa Ucrânia independente e queremos continuar assim. Mas não sei por quanto tempo seremos capazes de manter o nosso espírito elevado. É um trabalho difícil, considerando que temos outros problemas, como a covid-19 e a baixa taxa de vacinação, além dos problemas pessoais que qualquer pessoa enfrenta.
O dia-a-dia durante a guerra
É importante lembrarmo-nos do seguinte: mesmo sob ameaça de guerra, continuamos a ser humanos. No mês passado tentei esquecer um pouco estes possíveis cenários e fazer as minhas próprias coisas: ir ao cinema, encontrar-me com amigos, ir ao trabalho, ir ao ginásio e até aprender novas línguas. Na verdade, fiz por cuidar bem de mim. Como ouvi hoje uma pessoa a dizer na rua: ‘Quando a guerra chega… de repente nós queremos viver.’
Nas últimas semanas, esteve muito bom tempo, fez sol, e todos os dias tirava um momento para me sentir grata por simplesmente estar viva. Acho que nunca apreciei tanto as coisas simples como no último mês.
Eu adorava explorar o mundo e viver em muitos países durante meses ou anos, mas quero sempre voltar. Momentos como este fazem com que reparemos em todos os pequenos ruídos, cheiros, lugares que fazem desta a nossa casa. Coisas que sinto que não existem em mais lado nenhum. E estou realmente com medo de perder tudo isto.
As nossas vidas já começaram a ser destruídas; muitas pessoas perderam os seus empregos e todo o percurso das suas vidas está agora a tomar um rumo muito diferente. Não sabemos o que vai acontecer daqui para a frente. Mas sejam quais forem as escolhas que fizermos. Espero que nós, ucranianos, amemos e apreciemos um pouco mais o nosso país.
Não importa o quanto eu esperava que tudo isto fosse um sonho… a verdade é que não é. E o que acontece agora é uma violação dos direitos humanos. E enquanto algumas pessoas continuarem a ser tratadas desta maneira, ninguém estará realmente seguro. É preciso espalhar a palavra. É hora de acordar.”