A publicação de uma decisão da Inspecção-Geral da Administração Interna sobre o processo disciplinar de um militar da GNR suspeito da prática de um crime de abuso sexual de pessoa internada (vulgo detida, neste caso) deu protagonismo à decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de Dezembro de 2020 que absolveu esse mesmo militar da prática do referido crime.
Com base nas declarações de ambos, o tribunal recorrido deu como provado que houve uma relação sexual entre o militar da GNR e a mulher detida e que a iniciativa partiu da mesma. Por falhas de arguição no recurso do Ministério Público, o Tribunal da Relação não alterou a valoração dos factos feita pela primeira instância.
O crime de abuso sexual em causa exige que haja um aproveitamento das funções exercidas (no caso, enquanto militar da GNR responsável pelo posto) e da situação de vulnerabilidade da vítima, detida. Tendo sido dado como provada a iniciativa da mulher detida, o Tribunal considerou não haver crime.
É aqui que interessa determo-nos para perceber as subtilezas do consentimento. Porque não é a iniciativa, mas sim o consentimento que importa.
A regra do consentimento é simples: se não é sim, é não. Dizer que sim e depois dizer que não. Iniciar e depois deixar de querer. Dizer que sim e depois ficar inconsciente ou adormecer. Não reagir, deixar acontecer. Se não é sim, é não.
Perceber o consentimento implica desfazer construções como a ideia de que as vítimas de violência sexual têm de lutar para se defender. Ou a ideia de que os homens têm uma espécie de incapacidade fisiológica de resistir ao sexo – não é biologia, é performance de género, pois aprendemos e repetimos esse tipo de comportamentos.
Há várias passagens dos argumentos da defesa que fedem a marialvismo: quando se referem aos instintos libidinosos da mulher detida ou à necessidade do homem de resistir estoicamente aos avanços da mesma. Ou ainda quando tentam aduzir à prova a ideia de que a vítima é “não só sexualmente activa, mas manifestamente à vontade com a sua sexualidade” – como se viver a sexualidade com liberdade negasse às mulheres o estatuto de vítima neste tipo de situações de domínio.
As relações de domínio roubam-nos agência e afectam por isso o consentimento, que para o ser, tem de ser livre. Essas relações não se estabelecem apenas em concreto, como alegado neste caso. Na verdade, a posição de domínio pode ser abstracta e preexistente, determinada por transversos de género, raça, classe, orientação sexual ou capacidade física.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul) está em vigor em Portugal desde 2014. O consentimento é o elemento chave do artigo 36.º da Convenção sobre os crimes de violência sexual, estando os Estados contratantes obrigados a reflecti-lo na sua lei penal. Ainda não é o caso na lei ou nos tribunais portugueses. Mas é urgente que o seja, porque só uma lei baseada no consentimento pode contribuir para a desconstrução de ideias feitas sobre a sexualidade e dar uma protecção integral às vítimas, sem as voltar a vitimizar em sede de julgamento.
Este caso não é único, num mundo em que uma em cada três mulheres sofre violência sexual durante a sua vida (os dados são da OMS) e num país onde houve pelo menos 13 femicídios no ano passado.
Basta. Se não é sim, é não.