Um dilema de valores

Blockchain e criptomoedas não só rompem com noções tradicionais de valor económico — trazendo a promessa de novas aplicações financeiras e mercados inteligentes —, mas também ditam mudanças radicais de valores sociais, ameaçando-os.

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Reuters/BENOIT TESSIER

A actual concepção de dinheiro corresponde a um tipo restrito de informação: um estrato bancário, ou uma moeda de dois euros, apenas diz se tenho — ou distribui — dois euros. Enquanto que, através de criptomoedas, é possível inscrever na moeda em si informação sobre uma miríade de elementos, para lá do seu simples valor.

O Banco Popular da China está a implementar o e-yuan (um Digital Currency Electronic Payment), já disponível durante os jogos de Inverno. Num regime em que tudo anda de mãos dadas com o partido único, não é de admirar alguma da informação carregada em paralelo com a transmissão da moeda. Para já, o e-yuan incorporará informações biométricas, como impressões digitais. O suficiente para implicar o perfil de cada comprador a cada compra, a cada ranking de cidadania, e a partir daí poder negar transacções. O tipo de informação carregada, em paralelo com o simples valor, permitirá uma alavancagem e controlo brutal, tanto sobre a economia como sobre agentes económicos singulares.

Estas moedas digitais de bancos centrais (CBDC, na sigla em inglês) também são uma promessa do Banco da Inglaterra e da própria Zona Euro. Na verdade, a economia ocidental não terá outra opção, face às possibilidades da economia 3.0. Não o fazer seria ficar para traz e, mais grave do que se ter prescindido do sistema de capitalização de mercado, ou até da própria moeda, acrescido o factor interdependência e competitividade do século XXI.

Não é com a falta de familiaridade com carteiras digitais que devemos estar preocupados. Aliás, é essa que irá manter (de vivos a moribundos) os bancos de retalho.

Criando o Banco Central uma criptomoeda, que tanto emite como armazena numa carteira digital, o agente económico perde a necessidade de pedir a um banco de retalho, contra taxas e custos, que a armazene.

Alguém com um smartphone tem zero problemas em trocar de Netflix para HBOmax, Disney+, etc. Dado que o progresso das criptomoedas não vai parar — tal como tantos outros projectos que na internet revolucionaram a informação, criando utilidade e riqueza —, não demorará até que os iniciados ao e-euro colham outras vantagens junto das mais distintas criptomoedas.

As democracias liberais, ao tentarem não se tornar obsoletas, terão de optar entre tornar-se menos liberais ou menos democráticas.

A primeira hipótese implica um impedimento de progresso e uma estagnação tecnológica pouco característica do Ocidente, instituída na forma de proibições a criptomoedas não emitidas pelo respectivo banco central. Isto sobre a ameaça de se tornar irrelevante em política monetária e financeira, o que nos leva à segunda hipótese.

Quem já sofreu nas mãos de um site institucional sabe a dor infligida pela fraca atracção de talento das instituições. Sites estatais estão a anos-luz da Alphabet ou Meta. Não é realista supor que o Banco Central Europeu vingará nas suas soluções em livre concorrência. Imaginem distribuir estímulos num cenário em que o e-euro está desvalorizado face a outras moedas. Os estados perdem assim controlo económico que não seja como mero agente. Enquanto empresas como o Paypal ou a Apple, ambas com projectos para moedas, teriam influência desmesurada.

Se os estados quiserem manter a sua relevância tradicional, terão de impor um travão ao progresso que custará soluções originais e uma porção da economia maior do que aquela representada pelos bancos de retalho hoje em dia. Esta posição iliberal terá custos que, talvez, numa espécie de profecia auto-realizada, nos tornarão, por isso, ou inaptos face ao progresso chinês ou mais próximos do seu modus operandi.

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