Em Janeiro, um corpo suíço foi encontrado morto em um bairro movimentado de Paris. No mesmo mês, um corpo congolês foi torturado até a morte num quiosque, numa praia do Rio de Janeiro. Corpos, antes de corpos, são gente. Gente tem nome, mesmo quando já sem vida. René Robert é o nome do corpo encontrado morto no dia 19 de Janeiro na Rue de Turbigo, próximo à Place de la Repúblique. Moise Kabagambe é o nome do corpo açoitado até a morte no dia 24 de Janeiro, na Praia da Barra da Tijuca.
Robert era um fotógrafo suíço prestigiado, fotografando frequentemente à noite. Foi assim também naquela noite em Paris. Após uma tontura, caiu no chão por volta de 21h, quando os termómetros provavelmente registavam poucos dígitos. Dali em diante, a temperatura cairia mais pela madrugada e encontraria, cada grau a menos, um corpo mais frio e menos vivo. Não terão sido poucos os transeuntes que passaram por Robert naquela noite de sábado. O fotógrafo foi encontrado às 6h da manhã seguinte: um sem-tecto encontrara um sem-vida. A hipotermia encontrou-o pela manhã, mas as baixas temperaturas daquela noite não superaram as dos corações apáticos que por ele passaram. A poucos metros dali estava a Praça da República, espaço em homenagem à res(coisa) pública francesa, ao coração daquele povo. Mas, no dia 19 de Janeiro, a república ficou temporariamente suspensa, porque o senso republicano entrou em retrocesso. A indiferença mata tanto o sujeito, quanto o sujeito tornado por ela objecto. A que matou Robert, matou também um pouco da fraternidade ostentada pelos franceses. O seio da revolução decisiva para os direitos civis foi amputado em Janeiro, porque Paris acordou menos fraterna no dia 20, menos republicana. Revoluções não se fazem com indiferentes.
Entretanto, não é de hoje que a indiferença faz corpos nas grandes metrópoles. Trata-se de uma espécie de indiferença globalizada e globalizante, que contamina a tudo e a todos, de Estados a pessoas. Nesse cenário, alguns morrem de hipotermia, outros de politraumatismo. Alguns morrem de apatia, outros de apatia matizada com racismo. Esse foi o caso de Moise, um imigrante congolês residente no Brasil, que reivindicava seus direitos trabalhistas, quando foi morto a pauladas na orla da Barra da Tijuca. Diante das cenas de terror, a indiferença instalou-se novamente. Ninguém quis ver um homem negro sendo torturado até morte, porque vê-lo, seria comprometer-se a agir, a reagir. Cenas como tais, infelizmente, são comuns no Brasil. Muitas vezes perpetradas por agentes do Estado contra seus próprios civis. Na maioria dos casos, a dor tem cor. A mãe de Moise, em entrevista, mostrou sua indignação: “Vendo aquela cena (das pessoas batendo e outras assistindo) parece que indirectamente eles participaram da morte do meu filho.” Participamos da morte de Moise, ao fecharmos diuturnamente os olhos para o racismo que rege as relações sociais e económicas em cada esquina, praia e quiosque. Fugindo da sobrevida no Congo, tiramos a sua segunda chance de vida, agora no Brasil.
O Brasil foi construído sobre alicerces coloniais racistas. Em 1888, a abolição jogou boa parte de seu povo na informalidade e no desemprego. Em 2022, a desigualdade social no Brasil continua permeada pelas questões raciais. Pretos e pardos recebem, desde sempre, menos que brancos e ainda hoje são a grande maioria de desempregados no país. Quando um congolês, fugindo das mazelas da sua terra natal, aporta no Brasil do século XXI esperando encontrar um país cordial, não encontra cenário muito diferente daquele país do séc. XIX, pós-abolição. Informalidade e desemprego é o que o espera. Aliás, a economia brasileira coloca de escanteio seus próprios negros, não importando o nível de escolaridade e qualificação que possuam. A indiferença quando amalgamada em racismo e xenofobia é ainda mais sádica, porque feita com dolo. Este foi o conjunto perverso que matou Moise no Rio: indiferença racista e xenofóbica. Além de seus torturadores directos, o Estado e a sociedade brasileiros, despistando os olhos do escárnio racista que lhes habita, contribuíram também para o homicídio. Participantes por omissão, os transeuntes são o retrato de um país calcado na tortura histórica que busca suavizar, enquanto se blinda, do extermínio do povo negro.
Em Paris, a indiferença matou um suíço. No Rio, um congolês. A cidade das luzes foi incapaz de jogar luz sobre um corpo caído no chão, morto de frio. A cidade maravilhosa ficou infinitamente menos maravilhosa no dia 24 de Kaneiro. Na causa mortis dos obituários e epitáfios de Robert e Moise, deixamos os versos de Cecília Meireles: “Já não se morre de velhice nem de acidente nem de doença, mas, Senhor, só de indiferença”. Por aqui e por toda a parte, vamos globalizando indiferenças, nos afastando do Outro e, em alguma medida, de nossa própria humanidade.