O chef Rodrigo Castelo é uma canseira. Mas, calma, uma canseira boa. Numa recente viagem entre Santarém e o cais fluvial de Lentiscais, na margem do rio Pônsul (Castelo Branco), o criador do restaurante Ó Balcão não parou de desfilar ideias, projectos em execução e outros que estão em fermentação.
Passou-se por uma plantação de pistácios na A23 e ele começou a falar de um prato que está a imaginar com estes frutos secos (note-se que esta exploração só dará frutos daqui por três a quatro anos). Falou-se de uma sertã de barro como técnica interessante para confeccionar certos peixes pequenos, mas que já não se faz porque os oleiros deixaram-se disso e o chef liga ao mestre Fernando Correia, de Coimbra, que, por sua vez, pede uma imagem “para ver o que se poder fazer”. Vieram à baila galinhas e Rodrigo demora um minuto a meter em alta-voz um amigo que está à procura de ovos para instalar uma linha pura das quatro raças das galinhas portuguesas (preta lusitânica, pedrês, amarela e branca). A conversa continua com a questão da rigidez dessas carnes, mas, quando alguém sugere o método de alimentação dos franceses poulets de Bresse, Rodrigo levanta a hipótese de se dar este ou aquele cereal, este ou aquele vegetal, esta ou aquela erva no final do ciclo de vida das galinhas. Certo.
Faz-se um curto silêncio no carro, rapidamente quebrado pelo chef: “Quando chegarmos ao restaurante, a ver se não me esqueço de vos dar a provar presunto feito a partir de porcos que se alimentam com nozes. Está um espectáculo.” Ou seja, a viagem marcou-se por causa dos peixes do rio, mas Rodrigo Castelo quer é falar de tudo aquilo que o Ribatejo dá para comer – de melões a bois capados, passando por um – imaginem só! – espumante cuja base é água-pé e que está a estagiar nas Caneiras. Estão a agora a ver a história da canseira? É preciso muito papel e caneta para acompanhar este chef.
Pôr o peixe de água doce no mapa
Em 2013, Rodrigo Castelo colocou Santarém na rota daqueles que exigem ser surpreendidos à mesa. Como? Com paixão, dedicação, estudo e visão. A visão começou logo a notar-se quando o chef percebeu que o Ribatejo tinha recursos alimentares que ora estavam esquecidos ora estavam desprezados. E um deles foi o peixe do rio. Ou, melhor dizendo, as numerosas espécies de peixes do rio, que, como sabemos – e com excepção da lampreia, do sável, de uns peixinhos fritos no Sabor ou de umas sopas nas margens do Guadiana – não são motivo suficiente para um gastrónomo fazer um desvio de 100 metros.
Só que Rodrigo fez da fataça, das ovas do barbo, do lucioperca e de uns camarões do rio uma festa gastronómica. E a partir de Fevereiro avançará com uma ementa dedicada a mais peixes de água doce – O Que é Doce Nunca Amargou –, e que, lá está, resulta da dedicação e do estudo. Rodrigo Castelo frequentou recentemente um curso sobre peixes do rio no Museu Nacional de História Natural e Ciência, em Lisboa, organizado por vários biólogos marinhos.
“Queria conhecer a variedade de peixes que temos nos nossos rios e barragens, espécies autóctones e exóticas, e queria saber, com rigor, em que altura do ano podemos ou não capturar determinadas espécies”, justifica. “Hoje, não só posso conversar com maior conhecimento com os pescadores que me fornecem como posso informar os meus clientes que o restaurante serve peixes capturados de acordo com a lei”, conclui Rodrigo Castelo, minutos antes de nos encontramos com Carlos Serras, que é o grande nómada da pesca de água doce em Portugal. Pescando entre a Barragem da Aguieira e o Alqueva, Carlos passa muito tempo na estrada com os barcos atrelados.
Como a existência de peixe nos rios depende de muitos factores, Carlos anda sempre com os barcos de um lado para o outro. Pesca “onde está a dar”. E são dez barcos porque Carlos e a sua equipa, dois homens e três mulheres, tanto pescam como preparam e embalam com profissionalismo cada espécie capturada. De resto, foram estes cuidados que fizeram de Carlos Serras um pescador respeitado no universo da restauração.
“Quando alguém da restauração diz que quer comprar o nosso peixe tem de vir primeiro ao nosso estaleiro, nas Mouriscas, para ver como trabalhamos. Sem isso, nada feito”, diz-nos. E dá como bom exemplo a carpa. “Dantes, quando se grelhava uma carpa inteira, como é muito alta, a carne não cozinhava toda ao mesmo tempo. Foi então que me lembrei de apresentar as carpas em barrigas e lombos, que assim grelhavam uniformemente. Funciona, mas primeiro que pegasse demorou para aí uns cinco anos. Isto do peixe do rio demora tempo até ser bem aceite. E como demora tempo, o dinheiro também demora a chegar.”
No dia em que passamos pelo rio Pônsul, Carlos, Rosa e André estavam a levantar redes com siluros, luciopercas e carpas, espécies invasoras que originam problemas de equilíbrio ambiental complexos, em especial o siluro ou peixe-gato, que é considerado um super-predador pela capacidade que tem de destruir o equilíbrio dos ecossistemas.
As preparações que Rodrigo Castelo faz com estes e outros peixes são muito variadas. Resultam da ligação com outros produtos, das pré-preparações e das técnicas de confecção, mas, atendendo a que são peixes de água doce, quase todas passam por um processo de cura com sal, açúcar e água com gás e, nalguns casos, exposição ao fumo. As cabeças e as espinhas servem de base para caldos que têm como finalidade intensificar o sabor de uma emulsão ou de um arroz qualquer. Tudo se aproveita. Entra-se na cozinha do Ó Balcão e não se sabe bem se aquilo é mesmo uma cozinha ou um laboratório. Há sempre experiências a decorrer, todas com a finalidade de dar sabor a uma matéria-prima aparentemente insípida.
Peixe de rio em modo de degustação
O menu de peixe do rio que estará disponível em Fevereiro no Ó Balcão terá uma infinidade de espécies, consoante a época, com pratos clássicos e novidades. Podemos começar com uns crocantes e refrescantes coscorões recheados com espuma de coentros, lima, mel e camarinha e fataça, passar para uma gulosa couve com açafrão e pampo, e terminar com uns peixinhos-rei fritos e enfiados numa maionese de lima e limão.
As coisas começam a ficar mais sérias – e surpreendentes – com a carpa curada e fumada. Admitimos que possa existir algures uma receita interessante com tal peixe que tende a saber bastante a lodo, mas a nós nunca nos calhou nada de jeito. Acontece que, fumada e servida simplesmente ao natural, quer a barriga quer o lombo surpreenderam pela intensidade de sabor. Se o corte fino faz lembrar lascas de presunto, em matéria de sabor parece que estamos perante os pequenos tunídeos que se secam na Madeira (o gaiado), mas aqui com mais finura e gordura.
Como pratos principais continua imperdível a sopa de ovas de barbo (cremosa) e um pedaço de lucioperca com a sua pele crocante. Quem quiser perceber por que razão há gente que enaltece, com justiça, o sabor deste predador, pois faça o favor de se servir.
Já a fataça coberta por uma fina fatia de toucinho de porco malhado de Alcobaça, pêra, nozes crocantes e um caldo de espinhas é algo bem fora da caixa na conjugação de sabores. O toucinho dá untuosidade ao peixe.
Numa espécie de homenagem à avó, Rodrigo criou um arroz cremoso de caranguejo, onde assentam três lagostins do rio, pistácios triturados, raspas de rábano e rebentos de wasabi. De facto, o arroz aveludado ganha frescura com o rábano e o wasabi. Dá vontade de pedir uma segunda dose.
Para finalizar, o famoso siluro. Sabemos que o mar está cheio de peixes tão feios quanto saborosos, mas daí a imaginarmos que algo semelhante ao repugnante Jabba, the Hutt da Guerra das Estrelas pudesse dar um prato saboroso vai uma grande distância. O chefe do Ó Balcão apresentou-nos pedaços do super-predador que revelavam uma mistura inusitada de músculo com gordura, de tal forma que, partido e afastado com a faca e o garfo, libertavam fios como se estivéssemos perante um pastel de bacalhau.
No dia da visita ao restaurante o chef serviu pedaços de siluro numa emulsão que fez com a cabeça do mesmo e magusto. Mas, como anda sempre a inventar, o siluro virá, no novo menu, a acompanhar uma mão de vaca.
Há chefs repentistas e chefs que nunca fogem das fichas técnicas. Nós gostamos mais dos primeiros. Sem surpresas, a viagem a um restaurante tem menos piada.