Recentemente, o Brasil perdeu uma das suas vozes mais vigorosas, no conteúdo e na forma. Em 1999, a rádio BBC de Londres reconheceu em Elza Soares, a cantora brasileira do milénio. Essa voz, a que foi emprestada pelo meu povo ao milénio, volta agora ao lugar donde brotou: o jardim-santuário das divindades humanas. Com a sua morte, é a eternidade que ganhou da humanidade um indelével legado artístico, na luta pela igualdade racial, social e de género. Elza Soares, em vida, foi o rasgo da voz de um povo historicamente oprimido e silenciado. Elza Soares, na eternidade, será a voz que ecoa desse mesmo povo que necessita ser ouvido, não no próximo, mas neste milénio: negros, pobres e mulheres.
Elza Soares nasceu no berço do samba, na cidade do Rio de Janeiro e, durante muito tempo, morou na favela da Vila Vintém, onde ajudava a sua mãe com os trabalhos domésticos. Foi lá, subindo e descendo as ladeiras com galões d’água na cabeça, que a cantora desenvolveria o famoso timbrado único da sua voz. O engajamento com as questões sociais sempre ficou expresso nas letras das suas canções, como em A Carne, Deus há-de ser, O que se cala, Exu nas Escolas, mas também nas suas aparições e manifestações públicas. Nesse sentido, duas delas chamam a atenção por tão bem representarem a perenidade dessas questões ao largo de todo o arco temporal de sua vida: a primeira ocorreu antes mesmo da fama, em 1953, quando Elza faria a sua primeira aparição num show business do rádio, no concurso musical Caloiros em Desfile, comandado por Ary Barroso. Na ocasião, ainda muito pobre, Elza estava vestida com roupas muito simples, o que despertou risadas da audiência do programa e do próprio apresentador que, num determinado momento, perguntou a candidata: “- De que planeta você veio, minha filha?” Ao que ela respondeu: “- Do mesmo planeta que o senhor... Do planeta fome, seu Ary”. O primeiro álbum de Elza carregaria, então, o nome Planeta Fome.
Já a segunda e recente manifestação ocorreu em Abril de 2018, num show realizado em Buenos Aires, onde Elza não poupou críticas ao crescente clima de ódio e autoritarismo que já consumia a política e a sociedade brasileiras: “O meu país enfrenta um triste momento político e social. Querem matar os nossos sonhos, prender nossas liberdades. Não irão conseguir. Lutarei por ele, por nós. Viva a democracia” (excerto do livro Sobre Lutas e Lágrimas: uma biografia de 2018, do jornalista Mário Magalhães). Naquele ano, Elza lançou o disco Deus é Mulher, repleto de canções socialmente engajadas com os problemas do Brasil contemporâneo. Para Magalhães, a sua sempre consciente voz, naquela altura da vida política brasileira, representou um “canto de esperança no país do desalento”. Afinal, basta lembrar que, também em 2018, Marielle Franco foi brutalmente assassinada na mesma cidade de Elza.
Dos soares de sua voz rasgada, nós, brasileiros, esperamos resgatar a energia necessária para fazermos do Brasil, um lugar mais justo, verdadeiro e carinhoso com seus filhos, isto é, com a esmagadora maioria de sua prole: negros, pobres e mulheres. Felizes daqueles que tiveram a oportunidade de viver na mesma época e dividir o mesmo pedaço de terra que Elza, seus contemporâneos e conterrâneos devem-se orgulhar de tamanho privilégio. Aos que estão por vir, os soares de Elza permanecerão rasgando solos e colos, chão e coração brasileiros.
Devidamente sentada à esquerda de Deusa Mãe Toda Poderosa, Elza junta-se à legião de deidades da Música Popular Brasileira (MPB) e, a partir de agora, qualquer reverência à sua imagem será ainda muito escassa diante do sagrado e do terreno, do rasgado e do sereno, que sua música, vida e luta representam. Como expressou lindamente Caetano Veloso, na mensagem de despedida à sua grande amiga, Elza Soares morreu “afirmando a grandeza possível do Brasil”. Símbolo do samba e da MPB, Elza é o retrato do país que prometeram a nós, jovens brasileiros. Elza é o território onde queremos viver plenamente e pelo qual lutaremos até o último soar, porque “nosso país, nosso lugar de fala!”