Imagens janela, imagens brinquedo
A imagem de Triplett oferece-nos ainda uma outra camada de interpretação: no lugar da tela, que era um mecanismo de espelhamento e reenvio, está a coisa em si.
Recentemente, o realizador Paul Schrader partilhou nas redes sociais uma fotografia tirada por Shawn Triplett, um fotógrafo amador norte-americano. Esta imagem, que se tornou viral, capta um cinema destruído na cidade de Mayfield, no Kentucky, devido a um tornado que assolou vários locais dos Estados Unidos. A fotografia é tirada do ponto de vista de um espectador sentado na sala de cinema, e no local da tela está um buraco, revelando o lado de fora: uma cidade em escombros.
Uma imagem eloquente a terminar 2021 cujo poder assenta numa certa literalidade paradoxal: se, por um lado, ela visualiza o potencial realista que o crítico francês André Bazin depositava no cinema, o de ser uma “janela para o mundo”; por outro lado, esta fotografia comenta a decadência da importância dos rituais de visionamento do cinema em sala, acentuado neste par de anos de confinamentos intermitentes. Como se o extremo cumprimento realista do cinema implicasse, em função da sua metamorfose com o “lá fora”, uma decadência de uma forma de ver o cinema.
Mas a imagem de Triplett oferece-nos ainda uma outra camada de interpretação: no lugar da tela, que era um mecanismo de espelhamento e reenvio, está a coisa em si. Talvez essa seja a sua verdadeira literalidade. Um comentário a um sistema contemporâneo de produção de imagens que corta “através” da ideia da imagem e simbologia.
Peguemos, como exemplo, numa outra imagem “viral” bem recente. Todos vimos João Rendeiro de pijama, aquando da sua detenção num resort na África do Sul. Se esse instante particular, de natureza privada, pouco acrescenta à notícia que importava dar, resta especular que se trataria de uma imagem-humilhação, uma forma de sensacionalismo que se destinava a ripostar pela audácia do banqueiro ao ter fugido à justiça portuguesa. Muitas partilhas, cliques e piadas depois, a humilhação converte-se em imagem-brinquedo que entretém. E ficamos, parece-me, numa impossibilidade, num vazio simbólico em que a imagem não se combina com nenhuma ideia ou valor. E nem sequer remete a si mesmo, numa espécie de lisura que desafiasse a hermenêutica. A sua derradeira simbologia é, afinal, a sua intercambialidade, pois será substituída em breve por um novo brinquedo performativo.
É conhecida a lei segundo a qual Aby Warburg, o historiador de arte alemão, organizava a sua biblioteca: a “lei da boa vizinhança”. Cada livro ocupava o lugar que deveria prolongar ou contestar o tema do livro que era seu vizinho de prateleira. O sistema de partilha das imagens seguindo uma lógica sensacionalista não procura essa afinidade, é essa tela destruída que, na ânsia de nos fazer tocar o real, apenas nos dá o escombro; as imagens circulam no local social onde a tasca, a biblioteca, o espaço público, as vidas privadas coabitam e são indistintas. Espaço no qual, sob a pele bem-intencionada da partilha democrática e da igualdade de acesso, se esconde um predatório sistema de eficiência que tudo tritura para construir uma certa ideia de “visibilidade”.