A escassez consome-nos e sobrecarrega-nos

Quem experimenta uma sensação de escassez, seja ela de dinheiro, de tempo, de amigos ou de comida gere bem os seus problemas no curto prazo.

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"Vidas que são pedaços de caos sobre a desordem que encerram" Rui Gaudencio/Arquivo

Don't Look Up - Não olhem para cima é um filme “baseado em eventos realmente possíveis” e que narra a história de dois cientistas que descobrem um cometa que colidirá com a Terra. Procuram então alertar para o perigo iminente, contudo poucos parecem importar-se, ao mesmo tempo que observamos a ganância e falta de empatia de um bilionário de uma empresa tecnológica, que invoca o bem comum, mas apenas olha para o seu umbigo, qual Narciso frente ao espelho de água. O filme pode ser visto como uma sátira trágico-cómica acerca da alienação em que vivemos a vários níveis, sendo as desigualdades socioeconómicas uma das mais evidentes.

Qual a origem da pobreza? Como quase tudo ela é multifactorial. Contudo, actualmente, o que mais determina o nível de riqueza de uma pessoa é o país onde nasce. Mais de 60% do nosso rendimento depende disso. A maior desigualdade económica mundial é a desigualdade entre países e não dentro de cada país.

Como se perpetua? Uma explicação interessante surgiu do psicólogo Eldar Shafir e do economista Sendhil Mullainathan, autores duma revolucionária teoria da pobreza baseada na escassez. Quem experimenta uma sensação de escassez, seja ela de dinheiro, de tempo, de amigos ou de comida gere bem os seus problemas no curto prazo. Mas, a escassez consome-nos e sobrecarrega-nos, tornando-nos menos aptos a focar-nos noutras coisas importantes para nós. Como refere Rutger Bregman, as pessoas pobres não tomam decisões idiotas, porque são idiotas, mas sim porque vivem num contexto em que qualquer um de nós as tomaria. A pobreza não é falta de carácter! É falta de dinheiro!

Até o Fórum Económico Mundial descreve esta progressiva desigualdade como a maior ameaça enfrentada pela economia global. Por isso se o argumento moral não for suficiente, basta pensar no financeiro. O combate à pobreza não faz bem só à nossa consciência, mas também ao nosso bolso! E pensar também no argumento da saúde e bem-estar, porque até os ricos sofrem quando a desigualdade é demasiado grande, tornando-se menos felizes, mais susceptíveis à depressão, à suspeição/insegurança e outras dificuldades sociais.

Há cerca de 800 milhões de pessoas em risco de pobreza extrema em todo o mundo e um quarto das crianças na União Europeia estão em risco de pobreza e exclusão social. Estas crianças têm maior propensão para problemas de comportamento, ansiedade e depressão, subindo a percentagem de 20% para 50% em contextos socioeconómicos desfavorecidos. O primeiro ano de pandemia fez mais 228 mil novos pobres em Portugal, ascendendo agora a 1,9 milhões de pessoas e 8200 viviam em 2020 em situação de sem abrigo.

São os filhos de um Deus menor. Os que vivem em escuridão, debaixo de escuridão, debaixo de escuridão! Vidas que são pedaços de caos sobre a desordem que encerram, a cumprirem calendário, alheios a si! É o som desafinado dos passos solenes dos que tudo têm, a anteceder os incertos dos que têm tão pouco!

Ao contrário das alterações climáticas, não precisamos de previsões, nem de cenários. Sabemos quantos sofrem com esta economia que destrói aos poucos, antes de matar de vez. Contudo, como alegadamente diria Estaline, “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. Por isso é que os números pouco valem por si só. Importam apenas para ajudar a compreender a vida das pessoas. Ainda assim, nunca nos contarão a história completa daquilo que é a nossa vida na Terra.

Segundo um relatório recente da OCDE, e à semelhança de outros países, um dos três principais desafios que o nosso país enfrenta é o aumento da desigualdade. Sabemos já que, no curto prazo, as mulheres, sobretudo idosas, os trabalhadores mais jovens e com vínculos de trabalho temporários, as famílias monoparentais (80% femininas) e sectores que estão relativamente à margem da economia formal foram os grupos economicamente mais afectados pelo agravamento da pobreza. Esta pandemia foi tudo menos igualitária nos seus efeitos!

Contudo, como indicou recentemente o Presidente da República, as transições mais preocupantes são as sociais e mentais. A recuperação económica será sempre mais rápida do que a social, alertando para a necessidade de olharmos para os mais vulneráveis. E ainda desconhecemos o verdadeiro impacto da pandemia na saúde mental, o irmão mais pobre da saúde em Portugal, que não pode ser esquecido, como refere.

Um facto positivo a assinalar é que, até à pandemia e nas duas décadas que a antecederam, a proporção de população no mundo que vivia em pobreza extrema diminuiu quase metade. Hans Rosling refere-se a este marco como a mudança mais importante que aconteceu no mundo durante o seu período de vida. Acabar com a pobreza extrema não é para utópicos! Os que defenderam a abolição da escravatura, o sufrágio das mulheres e o casamento entre pessoas do mesmo género também foram apelidados de lunáticos. Há que ter esperança e, simultaneamente, não descansar enquanto essa pobreza não for erradicada.

À medida que a economia recupera, que a educação e a saúde progridem, o desenvolvimento humano precisa de estar focado na equidade, no bem-estar e na sustentabilidade do nosso planeta, sem esquecer a saúde psicológica, com reforço das políticas de saúde, em especial nos cuidados de saúde primários. “Esperar e avaliar” como é sugerido no filme Don't Look Up - Não olhem para cima, não é solução! Apenas conduz a que “um bando de ricos fique ainda mais podre de rico”, como refere a protagonista do filme. A desigualdade afecta a saúde, o bem-estar e a dignidade humana!

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