Macron ou o caos ideológico
A França é o único Estado-membro da UE com direito a veto no Conselho de Segurança e também o único com vontade de contrariar ou “domar” autocracias como a chinesa e russa.
O facto de o Presidente francês ainda ter de apelar a cerca de 5 milhões não vacinados é bem representativo das contradições do país. Uma nação que, por um lado, também é uma potência militar, cultural, reforçada no papel de autoridade científica e, por outro, continuando a exportar algum do melhor vinho, queijo e arquitetura na Europa, que está demasiadas vezes intimidada na sua expressão global por aquilo que parte da sua população defende. Até em contraluz com a própria história e grandeza do país.
Macron, que desde sempre se assumiu como um europeísta convicto, pugnando por uma União Europeia mais poderosa, soberana e independente dos EUA, mas também mais verde e social, encontra-se hoje num novo momento decisivo para o seu mandato. Entre a esperança e a complexidade da presidência do Conselho da União Europeia, bem como das próprias presidenciais francesas em abril, alguns continuam a ver a extrema-direita como ameaça maior, contudo parece-me estar a suceder o contrário: uma Le Pen e Frente Nacional a perder o fulgor de outros tempos e onde até o surgimento de alguém como Éric Zemmour, que procura acender o cariz carismático intelectual deste extremo político, esbarra no facto de ele e outros estarem bem distantes da expressão eleitoral que julgavam vir a representar nas próximas eleições.
É evidente que tanto a esquerda como a direita clássica francesas, para lá dos extremos, consideram Macron ambíguo ideologicamente. Os primeiros criticam-no, porque continuam a vê-lo como o presidente da classe média alta que acredita na criação de riqueza como motor da economia, enquanto a direita clássica, mais conservadora, caracteriza-o como um socialista liberal que perpetua o marxismo cultural no país e a perda da soberania francesa. Totalmente díspares nas principais críticas, estes dois campos políticos subsistem distantes do concreto, reféns de uma certa moda que, além de passar ao lado dos desafios atuais, não são mais do que o saudosismo das ideologias cerradas que suplantam o sentido crítico e a abertura. Do contexto tão complexo como é o francês nas suas mais variadas vertentes, e no qual até questões como as da imigração jamais são de resposta óbvia, muito menos devem ser encaradas do ponto de vista ideológico em exclusivo, requerendo-se exatamente o inverso e aquilo que, em certa medida, um Governo como o de Macron tem representado ao longo dos últimos anos.
Nesse afunilar das coisas e de forma não menos relevante, os indicadores mais recentes dizem-nos que esta França liderada por Emmanuel Macron está com a melhor taxa de inflação da União Europeia, com um crescimento do PIB sem paralelo na OCDE, uma taxa de desemprego a rondar valores mínimos históricos (o mais baixo desde 2007) e que é ainda o único dos 27 Estados-membros da União Europeia a crescer demograficamente. Qualquer leitura distante e desapaixonada ideologicamente sugere, portanto, que a França está bem melhor e até se recomenda. Será isto suficiente para a maioria dos franceses? On vera, mas parece-me que sim, em linha com o que escreveu Sérgio Sousa Pinto num excelente e recente artigo referente ao recentrar do debate no PS e na nossa própria realidade lusa, “Não é a ideologia, estúpido.”
Mas regresso ao início deste texto e à esperança nesta presidência francesa no Conselho da União Europeia: Paris é verdadeiramente, e de há algum tempo para cá, a única potência entre as principais que procura reafirmar a relevância política da Europa no mundo. Mesmo a suposta humilhação do país na recente questão da parceria do Aukus não deixa de evidenciar alguma da excecionalidade da relevância francesa, tal como a sua resposta ao sucedido, bem distinta e assertiva, como aliás têm sido, comparativamente àquelas de todos os outros aliados dos EUA. Seja com Biden ou Trump. A verdade é que depois do “Brexit”, a França é o único Estado-membro da UE com direito a veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas e também o único que parece ter força e vontade para contrariar ou “domar” autocracias como a chinesa e russa onde estas o são.
Pensar numa Europa política hoje é algo penoso, mas, apesar de tudo, ainda se encontra matéria de facto. Fazer este exercício amanhã, imaginando uma França liderada por alguém que não seja Macron ou da sua linha e fibra política, já não, e colocaria a União Europeia na linha definitiva da irrelevância democrática.
O pragmatismo e alguma da grandeza da França de hoje também se expressa através da escolha de uma destas variáveis e a atual presidência do Conselho da UE é o melhor ingrediente para o Governo de Macron relembrar os franceses disso mesmo, até às eleições presidenciais em abril.
Fazem bem.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico