Rótulos só na roupa, não no autismo

O autismo não é um rótulo. É um diagnóstico necessário para que qualquer autista tenha acesso a apoios que podem mudar a sua vida. Nunca exigiríamos que as pessoas com outros tipos de deficiência diagnosticada fossem “visivelmente deficientes” o suficiente para usar o nome da condição que têm em primeiro lugar.

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Yusuf Evli/Unsplash

Recentemente, um artigo de opinião publicado no The Guardian dizia: “Porque é que precisamos dos rótulos para sermos simpáticos uns com os outros e connosco? Vamos deixar o rótulo de autismo para aqueles que mais precisam”. Quem, exactamente, precisa mais, senão os autistas? Como pretendemos seleccionar quem é mais ou menos merecedor do “rótulo"?

Fui diagnosticada aos 29 anos. Isso foi há dois anos. Quando criança, tive mutismo selectivo, o que significa que me tornava não-verbal sempre que estava com pessoas que não conhecia. Como adulta, ainda fico não-verbal se me sentir sobrecarregada. Eu tenha um grave distúrbio alimentar relacionado com selectividade alimentar, que me fazia ter dificuldades com as texturas dos alimentos e vários problemas de saúde devido a deficiência nutricional. Tenho extrema sensibilidade ao som (incluindo pessoas a falar), sou parcialmente surda e tenho problemas de saúde mental devido à ansiedade generalizada severa e alexitimia (dificuldade em identificar estados emocionais em si e nos outros). Então, eu mereço o “rótulo”?

Uma autista activista brasileira não foi verbal até aos 13 anos. Ela agora usa comunicação alternativa e escreve textos poderosos sobre activismo e acaba de se formar em pedagogia. Ela merece o “rótulo”, mesmo que não seja mais considerada “severa”, mas ainda precisa de apoio?

O autismo não é um rótulo. É um diagnóstico necessário para que qualquer autista tenha acesso a apoios que podem mudar a sua vida. Nunca exigiríamos que as pessoas com outros tipos de deficiência diagnosticada fossem “visivelmente deficientes” o suficiente para usar o nome da condição que têm em primeiro lugar. Independentemente da perspectiva de quão funcionais somos. Imaginem, por um minuto, dizerem que alguém em cadeira de rodas pode estar a utilizar a sua condição para desculpar situações do dia-a-dia, ou alguém com cancro pode não ter cancro de forma óbvia o suficiente para poder utilizar o título da condição que tem. Esta dificuldade em aceitar o que não se vê tem um nome: dissonância cognitiva, e é o desconforto mental de ter a suas crenças ou perspectivas contrariadas. Neste caso, o saber que alguém tem uma deficiência, e esperar que seja visivelmente óbvia, mas não a ver.

A realidade é muito preocupante quando examinamos as estatísticas associadas à condição. De acordo com a organização Autistica, uma em cada cinco pessoas com anorexia são autistas. Crianças com autismo têm 28 vezes mais probabilidade de tentar o suicídio do que crianças não autistas. Para adultos, é nove vezes mais provável. Actualmente, apenas 22% das pessoas autistas estão em algum tipo de emprego, de acordo com a National Autistic Society. Esses números são derivados de todos os autistas diagnosticados, não apenas de uma parte específica, e com mais dificuldades, do espectro.

A funcionalidade é um espectro em si. A “severidade” depende de quanto apoio uma pessoa necessita no seu dia-a-dia, o que pode variar significativamente ao longo de sua vida e normalmente está associado a um maior número de comorbilidades. Quanto mais comorbilidades tivermos, como deficiência intelectual, apraxia, epilepsia, problemas de saúde mental, etc., mais precisaremos de apoio. No entanto, a ideia de que as pessoas com autismo de “alto funcionamento” são génios brilhantes que não têm dificuldades é baseada em personagens estereotipados de filmes, não em nós.

Eu, realmente, comecei a conhecer-me com o diagnóstico, mas essa é uma maneira excessivamente simplista de interpretar a mensagem de identidade que a neurodiversidade passa. Desde que recebi o diagnóstico, tive adaptações e apoio no trabalho, em casa, de familiares, e agora tenho mecanismos de gestão e equipamentos que recebi graças a esse diagnóstico, bem como acesso a profissionais de saúde que têm experiência com cérebros como o meu. Agora entendo que tipo de comida posso comer e tenho o meu distúrbio alimentar controlado. Aprendi o que está por detrás das minhas dificuldades sensoriais, o porquê de acontecerem e como as evitar, o que me ajudou enormemente no meu dia-a-dia.

Fiz terapia e recebi medicação para a minha ansiedade severa, da qual estou agora a sair devido ao apoio que pude receber. Recebi um novo aparelho auditivo adaptado para a minha extrema sensibilidade ao som e uso auscultadores, brinquedos estimulantes e outros equipamentos em público para evitar crises. Graças a essas mudanças, consegui permanecer empregada por mais de dois anos consecutivos num emprego que adoro. Fundei e presido à Associação Portuguesa Voz do Autista em Portugal. Acabei de ficar noiva. Como ser humano, sou mais complexa do que menos funcional ou mais funcional.

É irresponsável da parte de todos, mas principalmente de profissionais de saúde, assumirem que alguém com diagnóstico não é autista o suficiente. Precisamos de nos concentrar no aumento do apoio a quem, devido as co-ocorrências, precisa de apoio diário e que tem mais dificuldade, ou que, pelas necessidades, não pode tornar-se totalmente independente. O gatekeeping do nome não vai fazer com que autistas com mais necessidades recebam mais apoios, mas sim invalidar e dificultar o acesso a quem tem dificuldades não tão óbvias, inclusive os autistas com mais dificuldades que ultrapassam por exemplo, as dificuldades da fala.

Tenho vários rótulos para me conhecer. Sou portuguesa, estrangeira residente no Reino Unido, parcialmente surda, mulher. Todos eles me ajudam a entender quem sou, mas o diagnóstico de autismo ajudou-me a finalmente entender-me a um ponto onde posso funcionar em sociedade e, finalmente, saber de que tipo de apoio preciso. Alguns autistas precisarão de apoio com a comunicação, outros com problemas sensoriais, outros com a saúde mental. Alguns podem ter criado mecanismos de gestão que são suficientes para terem as suas vidas de forma independente, enquanto outros precisam de apoio diário. Nenhum deles, no entanto, merece menos por se rotular com a deficiência com a qual foi diagnosticado.

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