Os mitos da transição verde

A narrativa hegemónica em torno das alterações climáticas chegou, assim, a um ponto de contradição impossível de ignorar: através de estratégias de manipulação discursiva e de coação material, vai fomentando a ilusão de que não há alternativa à mineração dita verde e às energias ditas limpas. Ou descarbonizamos, ou destruímos a natureza.

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Morgade, Montalegre Adriano Miranda

Em 2019, a Comissão Europeia anunciou a sua nova estratégia de crescimento sustentável — o Pacto Ecológico Europeu, que, por meio de “investimentos em tecnologias verdes”, pretende “encaminhar a Europa para um processo de transformação numa sociedade justa e próspera”. Um ano mais tarde, os chefes de Estado da União Europeia (UE) comprometeram-se a reduzir em pelo menos 55% as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) até 2030, com o objectivo de atingir a neutralidade carbónica até 2050, projectando, assim, uma transição energética baseada na descarbonização da economia e da sociedade. Mas, embora rotulada de “verde” e “ecológica”, esta transição replica os mesmos erros do passado e não fará mais do que intensificar a degradação socioecológica que promete combater.

O abandono dos combustíveis fósseis, tal como projectado pela UE, exige a criação de infra-estruturas industriais e tecnológicas imensas, por sua vez dependentes da extracção de matérias-primas alternativas, como o lítio e as terras-raras. Longe de ser “renovável”, portanto, esta “transição” perpetua e legitima a expansão de actividades extractiv(ist)as. Em nome da descarbonização, justificam-se violências ecológicas indizíveis, tais como a abertura de centenas de hectares de minas a céu aberto, que inevitavelmente irão contaminar reservas de água, poluir a atmosfera, dizimar os solos, devastando, assim, territórios inteiros. É o caso, por exemplo, das serras do Barroso, da Argemela, d’Arga e de todos os outros lugares (aqui, e mundo fora) onde se encontram recursos tidos como “inevitáveis” para a transição. A narrativa da inevitabilidade legitima, assim, a pilhagem, exploração e colonização destas áreas. Aldeias como Covas do Barroso ou Gornje Nedeljice foram transformadas em verdadeiras “zonas de sacrifício verde”: territórios envenenados, esventrados e empobrecidos em nome do progresso capitalista “ecológico”.

O combate às alterações climáticas tem servido, assim, para justificar um novo tipo colonialismo. Megaprojectos pintados de “verde” — como estas minas — são apresentados como condições sine qua non para a redução de emissões. Mas como falar de transição verde se esta depende da destruição massiva de ecossistemas e de biodiversidade? A única transição a que assistimos é aquela por via da qual o capitalismo se tem vindo a reestruturar, alargando as suas garras predatórias a territórios previamente não colonizados.

Além disso, uma transição energética que não equacione uma redução drástica nos níveis de energia consumidos levará inevitavelmente a um aumento da necessidade de extracção, transformação e transporte de matérias-primas e bens de consumo, como, aliás, a própria UE já prevê. Como falar de transição energética se esta mantém, sem as questionar, as mesmas lógicas de produção e consumo energético?

Finalmente, a retórica oficial, focada exclusivamente na emissão de GEE, ignora os muitos outros problemas ecológicos que nos assolam: a sexta extinção em massa, a destruição de ecossistemas, o esvaziamento, aquecimento e plastificação dos oceanos. Ao menosprezar todos estes problemas, cria a ilusão de que podemos resolver a crise ecológica tratando de um sintoma apenas. Fazendo-o, não questiona as actuais práticas agrícolas industriais, os modelos de consumo e as estratégias de mobilidade — ancoradas na dependência ao crescimento económico exponencial, o verdadeiro motor acelerador da destruição socioecológica.

A narrativa hegemónica em torno das alterações climáticas chegou, assim, a um ponto de contradição impossível de ignorar: através de estratégias de manipulação discursiva e de coação material, vai fomentando a ilusão de que não há alternativa à mineração dita verde e às energias ditas limpas. Ou descarbonizamos, ou destruímos a natureza. A violência da falsa escolha binária é reveladora da falta de sentido das soluções que nos impingem. É urgente que a narrativa verde dos governos e do capital seja combatida, desmistificada e trocada por uma outra: a do verde da natureza, de quem dela vive, e de quem dela cuida. Isso implica acabar com a lógica do crescimento infinito, que legitimou séculos de espoliação, e abraçar as possibilidades de mundos mais lentos, mais participativos, mais solidários, em que os modelos  de consumo, produção e distribuição de energia respondam às necessidades reais das populações e não às do capital; em que as pessoas e infra-estruturas estejam em simbiose com os territórios e não contra eles; em que a vida, ao invés da destruição, seja defendida, respeitada e amada.

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