Custos e benefícios de uma dissolução
Marcelo Rebelo de Sousa sofreu, com a crise orçamental, o primeiro percalço do seu segundo mandato.
Foi uma dissolução parlamentar “apalavrada” que o Presidente usou como manifestação de força do seu poder moderador, para compelir a aprovação do Orçamento ou para, em alternativa, mudar o ciclo político. Falhado o objetivo orçamental não é certo que uma mudança substantiva de ciclo ocorra ou que, ocorrendo, traga a governabilidade de que o país necessita.
Baralhar e ficar tudo na mesma?
Marcelo Rebelo de Sousa sofreu, com a crise orçamental, o primeiro percalço do seu segundo mandato. Por três razões fundamentais.
A primeira é de ordem constitucional. O Presidente, ao ter atuado politicamente junto de deputados insulares do PSD para viabilizar o Orçamento, transpôs os limites das suas competências constitucionais. Com efeito, excluída a promulgação, o veto e o controlo preventivo de constitucionalidade, o chefe de Estado não deve intervir, por sua iniciativa, num processo legislativo parlamentar. Essa interferência não encaixa nas suas funções arbitrais de caráter informal, salvo solicitação das “partes” partidárias em litígio, o que não terá ocorrido. O saldo final foi um orçamento reprovado e um ato político falhado.
A segunda razão é de ordem político-partidária. O Presidente, ao agir junto do PSD insular desautorizou o seu líder nacional, com a agravante de ter recebido o adversário interno deste, Paulo Rangel, no meio da crise orçamental. Marcelo é usualmente cauteloso, na sua nuvem de ambiguidades, em relação a gestos e sinais políticos. Essa audiência foi um sinal implícito em favor de um Rangel que na altura parecia colocado numa “pole position” para liderar o PSD, com apoio de notabilidades e do aparelho. Mas, contra a maioria dos prognósticos, ventos e marés, Rio ganhou e o Presidente, reflexamente, perdeu. Se Rio liderar ou integrar um Governo ganhará autonomia efetiva em relação a Marcelo.
A prática política portuguesa ensina que, quando um Presidente da República interfere na vida interna do seu partido de origem, contra o respetivo líder, ele terá de “ir à jugular”, como Soares fez com Constâncio. No caso presente, este ensaio gorado em versão “soft core” deixou um Rio legitimamente picado e um setor do PSD mal-humorado.
A terceira e última razão é de ordem institucional e prende-se com a governabilidade do país em face de um resultado eleitoral incerto. Um cenário pós-eleitoral que não favoreça um governo estável e apto para enfrentar a crise económica e social que se aproxima não deixará de responsabilizar o Presidente da República.
Um funeral, um “casamento” e uma separação
Se a composição do Parlamento sofrer escassas variações, na linha da sondagem do Expresso de 13 de novembro (ou seja, sem maiorias absolutas, com um recuo do PCP, Bloco e PAN, um ligeiro aumento do PS, a estagnação ou um aumento escasso do PSD, uma “experiência de quase-morte” do CDS e uma subida do Chega), a dissolução redundaria num ato espúrio. Independentemente de um governo minoritário socialista poder vir a costurar acordos à esquerda ou à direita, novas eleições antecipadas seriam, a prazo, inevitáveis.
Se o resultado, ao invés, criar condições para um bloco central (contra o qual Marcelo combateu na “Nova Esperança”) ou para um governo minoritário de um dos dois partidos, com apoio pontual do outro, haverá uma solução de estabilidade incerta durante dois anos e o PS e o PSD abrirão (tal como sucedeu entre 1983 e 1984), fissuras internas que, no atual cenário, catalisarão a subida de partidos mais à direita e à esquerda do espetro político, em eleições inevitavelmente antecipadas.
Finalmente, se, com pouca probabilidade, o PS obtiver maioria absoluta, sozinho ou com o apoio de alguns “nanopartidos”, com a simultânea ascensão do Chega, a família política do Presidente dificilmente lhe perdoará ter convocado eleições num tempo em que os seus partidos se encontravam divididos em frondas e eleições internas. O chefe de Estado será alvo, uma vez mais, da acusação de favorecer os socialistas, a quem a dissolução, numa primeira análise, poderia convir. O resto do mandato presidencial seria marcado por uma separação com o povo da direita e do centro-direita e por uma menor relevância política autónoma do chefe de Estado frente a um governo maioritário.
A ressurreição de Lázaro
Rui Rio fez uma oposição tépida ao PS, o seu discurso pouco entusiasmante não inovou, apresentou como melhor oferta ao eleitorado a perspetiva um bloco central ou algo equiparado e, tudo isto, deprimiu apoiantes originários e deixou nestas diretas outros militantes em casa, desencantados com as alternativas. Mas, tal como Rangel admitiu na noite da sua enésima derrota eleitoral, a eleição interna relegitimou o líder do PSD o qual fez um discurso de vitória galvanizado e impressivo, dado que enfrentou solitária e corajosamente tudo e todos, desde Belém até ao aparelho, passando pelo Expresso que no sábado publicou uma capa assassina.
Cabe-lhe pois: i) afinar o discurso eleitoral imprimindo-lhe conteúdo (e deixando de martelar a ideia implícita de “bloco central” que o faz esmaecer como alternativa);ii) projetar as suas melhores valências técnicas como Joaquim Sarmento; iii) suster no plano interno uma tentação revanchista a qual pode dividir num momento de necessária unidade funcional; iv) evitar confrontos estéreis com os partidos à sua direita, os quais não são para o PSD o verdadeiro adversário.
Eleições em tempos de calamidade pública
O timing da dissolução” levanta outras dificuldades. Com o aumento das novas e perigosas variantes da covid-19 e o lockdown em vários Estados europeus, coloca-se o problema de o Parlamento não poder ser dissolvido em estado de emergência, caso o mesmo necessite ser decretado. Em qualquer caso, mesmo que tal não suceda, uma campanha eleitoral em “estado de calamidade”, com aumento da inflação e num ambiente de confinamento e de medidas compressivas das liberdades, poderá aumentar a abstenção, tornando os resultados finais numa “caixa de Pandora”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico