O dia em que a minha voz foi a voz das indígenas Kaingang
Mantive-me o mais fiel à mensagem de Luana e quando dei por mim, sentia a paixão das suas palavras a brotar nos meus lábios, sentia o assassinato das suas pessoas na minha pele, e sentia os ancestrais que habitam as suas terras no meu espírito.
Por uma tarde a minha voz pertenceu à tribo Kaingang, a qual desconhecia até àquela manhã. É a terceira etnia indígena mais populosa no Brasil, onde existem 305 povos indígenas. “Minga” significa “mãe”, mãe no sentido da terra que dá vida. A terra que nunca acaba. Minga Indígena é um coletivo de organizações indígenas que trouxe a Glasgow mais de 60 líderes de comunidades que vão do Alasca à Patagónia.
Ainda que não se conheçam previamente, tenham rituais diferentes, ou não falem as mesmas línguas, referem-se uns aos outros como parentes. Aqui, durante a COP26, participaram em alguns eventos oficiais e paralelamente organizaram a World Summit of Indigenous Peoples, onde durante 14 dias partilharam as suas experiências, a sua sabedoria e a sua relação com a terra para incentivar à reflexão e abrir caminho para novas soluções.
No dia 10 de novembro, participei como intérprete, ajudei a dar eco à voz de Luana Kaingang Lu, uma ativista do povo Kaingang situado no Rio Grande do Sul, numa conversa sobre desigualdades e os desafios da juventude indígena no Brasil. Na mesma mesa estava Genilda Maria Rodrigues e outra voluntária como eu, Giulia.
Estou habituada a falar e a ser ouvida, mas foi a primeira vez que me escutaram por palavras e ideias que não eram minhas. O trabalho de intérprete requer concentração. Ouço conceitos que não me são familiares, sou obrigada a compreendê-los para, no instante seguinte, os transmitir a uma audiência desejosa de entender o que sai fervorosamente da boca das oradoras. Além do exercício mental de ouvir em português e reproduzir em inglês, tinha o desafio acrescido de ser português do Brasil, ao qual não estou acostumada. Por exemplo, Luana falou das “ongues” que só pelo contexto percebi que se tratavam de ONG’s. Luana começou a falar e enquanto eu tirava notas mentais, já ela ia embalada no seu discurso vibrante e eu conseguia sentir os olhos do público, maioritariamente britânico, a saltitar de Luana para mim, na expectativa de compreenderem aquilo que ouviam.
Desde os tempos de infância em que nos sentávamos no chão numa roda e jogávamos ao telefone estragado, que aprendemos, através da experiência, aquilo que se perde na tradução. Aprendemos também de forma muito inata o poder que o mensageiro tem para mudar a mensagem, como a ponte entre emissor e recetor pode ser tão frágil. É nessa ponte que o texto nasce, o discurso acontece e o nosso poder de decisão é desafiado: Transmitir o que ouvimos, ou antes, um disparate que garante uma gargalhada?
No meu caso transmitir um disparate é arriscar o nosso planeta. Mantive-me o mais fiel à mensagem de Luana e quando dei por mim, sentia a paixão das suas palavras a brotar nos meus lábios, sentia o assassinato das suas pessoas na minha pele, e sentia os ancestrais que habitam as suas terras no meu espírito.
As duas oradoras — Luana Kaingang Lu e Genilda Maria Rodrigues — desmistificaram a ideia de que no Brasil só é preciso salvar a Amazónia. Na verdade, o ecossistema da grande floresta tropical depende da saúde dos outros biomas brasileiros, que estão a ser cada vez mais destruídos pela entrada da cidade nas aldeias e pela substituição da natureza selvagem pela agro-pecuária e os campos de soja. A dor de serem expulsos das suas terras vem da ligação espiritual que têm com as mesmas, todos os seus antepassados vivem no solo e nas raízes das árvores que habitam aqueles terrenos. As tribos indígenas vão buscar força à terra, por estar embebida no sopro de vida de tantas gerações. Ao derrubarem as araucárias, árvores características das regiões que habitam, roubam-lhes a fonte da sua espiritualidade, enfraquecendo a comunidade. Profiro palavras que não são minhas: “Talvez vocês ainda não vejam, mas nós sentimos, sentimo-nos fisicamente mais fracos cada vez que matam mais um pedaço de terra.”
Juntas alertamos que aquilo que consumimos importado do Brasil — a carne, a soja, os tecidos —, estão manchados com o sangue dos povos indígenas. Pedimos para que não consumam além do essencial, tudo o que vai além disso é prejudicial não só para os indígenas como para a saúde dos próprios consumidores. Antes desta industrialização e contínua colonização, estes povos não sofriam de diabetes nem doenças cardiovasculares.
Mais velha, Genilda reflecte sobre a chegada dos europeus à América do Sul. Eram tão poucos e os indígenas eram tantos, que podiam simplesmente ter-lhes virado o barco, livrando-se de problemas que os iriam perseguir nos 500 anos seguintes. No entanto, receberam-nos de braços abertos e até hoje sofrem as consequências dessa generosidade. Apesar disso confiam que é unidos, indígenas e não indígenas, que vamos combater as alterações climáticas. É muito claro que precisamos uns dos outros para proteger o nosso planeta! Está na altura de deixarmos de esperar que venham ao nosso encontro a nível político, temos de começar a encontrar-nos a nível espiritual, convidam.
Apesar das enormes dificuldades em serem ouvidos, os povos indígenas vão alcançando pequenas grandes vitórias. Atualmente têm uma deputada entre os 513 que constituem a Câmara dos Deputados do Brasil e garantem lugares para pessoas indígenas nas universidades. É assim que Genilda, aos 64 anos, está a estudar Filosofia e Luana, aos 29, a estudar Ontologia. Adquirem este conhecimento para o aplicarem nas suas comunidades. Estão dispostas a aprender mais, em troca apenas nos pedem que eduquemos as nossas crianças a amarem a Mãe Natureza, a apreciarem o ciclo da vida e respeitarem esta terra única que todos coabitamos. Será que o conseguiremos fazer?
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico