O dia em que a minha voz foi a voz das indígenas Kaingang

Mantive-me o mais fiel à mensagem de Luana e quando dei por mim, sentia a paixão das suas palavras a brotar nos meus lábios, sentia o assassinato das suas pessoas na minha pele, e sentia os ancestrais que habitam as suas terras no meu espírito.

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Povos indígenas participam num protesto durante a COP26, em Glasgow, Escócia Reuters/YVES HERMAN

Por uma tarde a minha voz pertenceu à tribo Kaingang, a qual desconhecia até àquela manhã. É a terceira etnia indígena mais populosa no Brasil, onde existem 305 povos indígenas. “Minga” significa “mãe”, mãe no sentido da terra que dá vida. A terra que nunca acaba. Minga Indígena é um coletivo de organizações indígenas que trouxe a Glasgow mais de 60 líderes de comunidades que vão do Alasca à Patagónia.

Ainda que não se conheçam previamente, tenham rituais diferentes, ou não falem as mesmas línguas, referem-se uns aos outros como parentes. Aqui, durante a COP26, participaram em alguns eventos oficiais e paralelamente organizaram a World Summit of Indigenous Peoples, onde durante 14 dias partilharam as suas experiências, a sua sabedoria e a sua relação com a terra para incentivar à reflexão e abrir caminho para novas soluções.

No dia 10 de novembro, participei como intérprete, ajudei a dar eco à voz de Luana Kaingang Lu, uma ativista do povo Kaingang situado no Rio Grande do Sul, numa conversa sobre desigualdades e os desafios da juventude indígena no Brasil. Na mesma mesa estava Genilda Maria Rodrigues e outra voluntária como eu, Giulia.

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Leonor Castelo e Luana Kaingang Lu Lucie Machin Photography

Estou habituada a falar e a ser ouvida, mas foi a primeira vez que me escutaram por palavras e ideias que não eram minhas. O trabalho de intérprete requer concentração. Ouço conceitos que não me são familiares, sou obrigada a compreendê-los para, no instante seguinte, os transmitir a uma audiência desejosa de entender o que sai fervorosamente da boca das oradoras. Além do exercício mental de ouvir em português e reproduzir em inglês, tinha o desafio acrescido de ser português do Brasil, ao qual não estou acostumada. Por exemplo, Luana falou das “ongues” que só pelo contexto percebi que se tratavam de ONG’s. Luana começou a falar e enquanto eu tirava notas mentais, já ela ia embalada no seu discurso vibrante e eu conseguia sentir os olhos do público, maioritariamente britânico, a saltitar de Luana para mim, na expectativa de compreenderem aquilo que ouviam.

Desde os tempos de infância em que nos sentávamos no chão numa roda e jogávamos ao telefone estragado, que aprendemos, através da experiência, aquilo que se perde na tradução. Aprendemos também de forma muito inata o poder que o mensageiro tem para mudar a mensagem, como a ponte entre emissor e recetor pode ser tão frágil. É nessa ponte que o texto nasce, o discurso acontece e o nosso poder de decisão é desafiado: Transmitir o que ouvimos, ou antes, um disparate que garante uma gargalhada?

No meu caso transmitir um disparate é arriscar o nosso planeta. Mantive-me o mais fiel à mensagem de Luana e quando dei por mim, sentia a paixão das suas palavras a brotar nos meus lábios, sentia o assassinato das suas pessoas na minha pele, e sentia os ancestrais que habitam as suas terras no meu espírito.

As duas oradoras — Luana Kaingang Lu e Genilda Maria Rodrigues — desmistificaram a ideia de que no Brasil só é preciso salvar a Amazónia. Na verdade, o ecossistema da grande floresta tropical depende da saúde dos outros biomas brasileiros, que estão a ser cada vez mais destruídos pela entrada da cidade nas aldeias e pela substituição da natureza selvagem pela agro-pecuária e os campos de soja. A dor de serem expulsos das suas terras vem da ligação espiritual que têm com as mesmas, todos os seus antepassados vivem no solo e nas raízes das árvores que habitam aqueles terrenos. As tribos indígenas vão buscar força à terra, por estar embebida no sopro de vida de tantas gerações. Ao derrubarem as araucárias, árvores características das regiões que habitam, roubam-lhes a fonte da sua espiritualidade, enfraquecendo a comunidade. Profiro palavras que não são minhas: “Talvez vocês ainda não vejam, mas nós sentimos, sentimo-nos fisicamente mais fracos cada vez que matam mais um pedaço de terra.”

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Aos 64 anos, Genilda Maria Rodrigues estuda Filosofia Lucie Machin Photography

Juntas alertamos que aquilo que consumimos importado do Brasil — a carne, a soja, os tecidos —, estão manchados com o sangue dos povos indígenas. Pedimos para que não consumam além do essencial, tudo o que vai além disso é prejudicial não só para os indígenas como para a saúde dos próprios consumidores. Antes desta industrialização e contínua colonização, estes povos não sofriam de diabetes nem doenças cardiovasculares.

Mais velha, Genilda reflecte sobre a chegada dos europeus à América do Sul. Eram tão poucos e os indígenas eram tantos, que podiam simplesmente ter-lhes virado o barco, livrando-se de problemas que os iriam perseguir nos 500 anos seguintes. No entanto, receberam-nos de braços abertos e até hoje sofrem as consequências dessa generosidade. Apesar disso confiam que é unidos, indígenas e não indígenas, que vamos combater as alterações climáticas. É muito claro que precisamos uns dos outros para proteger o nosso planeta! Está na altura de deixarmos de esperar que venham ao nosso encontro a nível político, temos de começar a encontrar-nos a nível espiritual, convidam.

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O tema do encontro foi as desigualdades e os desafios da juventude indígena do Brasil Lucie Machin Photography

Apesar das enormes dificuldades em serem ouvidos, os povos indígenas vão alcançando pequenas grandes vitórias. Atualmente têm uma deputada entre os 513 que constituem a Câmara dos Deputados do Brasil e garantem lugares para pessoas indígenas nas universidades. É assim que Genilda, aos 64 anos, está a estudar Filosofia e Luana, aos 29, a estudar Ontologia. Adquirem este conhecimento para o aplicarem nas suas comunidades. Estão dispostas a aprender mais, em troca apenas nos pedem que eduquemos as nossas crianças a amarem a Mãe Natureza, a apreciarem o ciclo da vida e respeitarem esta terra única que todos coabitamos. Será que o conseguiremos fazer?


A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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