As crianças são como o Houdini!

As atitudes dos adultos em torno do brincar variam. Alguns ignoram ou consideram uma perda de tempo, outros uma actividade perigosa e subversiva, outros ainda um mecanismo de aprendizagem e socialização.

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Em Hong Kong um estudo revelou que as crianças passam menos tempo em actividades ao ar livre do que os prisioneiros Bambi Corro on Unsplash

A primeira imagem que me vem à cabeça quando penso em crianças felizes é a de miúdos aos pulinhos e gritinhos, de calções/fatos de banho e de sorrisos vestidos, debaixo de um jacto de água. Já lhe ouvi chamar mangueirada e também salpicos. Muito haveria a dizer sobre o impacto ambiental desta brincadeira, mas é inegável a felicidade, seja qual for a sua condição social. Curiosamente, não é uma experiência pessoal.

Em 1989, a Convenção das Nações Unidas reconheceu o brincar como um direito fundamental das crianças. Contudo, no rascunho inicial não constava este direito. Como é possível?! Porque nem sempre os desejos das crianças coincidem com o que os adultos consideram ser o seu melhor interesse. Brincar seria, provavelmente, a primeira coisa que as crianças pediriam se lhes fosse dada voz! Ao colocar este direito em pé de igualdade com outros direitos fundamentais, reforça-se a sua importância na vida das crianças, independentemente do contexto no qual estão inseridas, incluindo crise, guerra, pobreza e/ou doença.

As atitudes dos adultos em torno do brincar variam. Alguns ignoram ou consideram uma perda de tempo, outros uma actividade perigosa e subversiva, outros ainda um mecanismo de aprendizagem e socialização. Até para o desenvolvimento de competências de sobrevivência dos jovens animais brincar é essencial! Brincar é importante todos os dias! Não apenas em ocasiões especiais! Há uma associação directa entre brincar, comportamento adaptativo e bem-estar. Ao brincarem as crianças reorganizam o seu mundo interno, tornando-o menos assustador e/ou aborrecido, proporcionando um lugar seguro, no qual as emoções podem ser experienciadas.

Brincar promove competências socioemocionais, cognitivas, linguísticas, de resolução de problemas e de auto-regulação que auxiliam o desenvolvimento das funções executivas, do cérebro pró-social, assim como a gestão do stress tóxico. Também ajuda as crianças a prepararem-se para desafios futuros, porque as ensinam a aprender, explorar e flexibilizar.

No entanto, olhar para a utilidade do brincar no desenvolvimento de competências conduz-nos a um paradoxo. Os adultos insistem na ideia de promover e encorajar esta actividade, no sentido de ajudar as crianças a aprenderem. Ora brincar é suposto ser prazeroso! As crianças não devem brincar porque tal desenvolve funções cognitivas robustas, devem fazê-lo porque é divertido!

Assistimos a uma pressão cada vez maior para incorporar conteúdos didácticos em número desmesurado nos currículos, um pouco como o princípio da pista de dança numa discoteca: há sempre lugar para mais um! “Educar não é para encher o balde, mas sim acender a fogueira”, como diria Yates. A transformação da aprendizagem num mercado bolsista de resultados, priorizando testes, horários e programas e atirando as crianças para lógicas individualistas e ultra competitivas, reduz substancialmente o tempo que elas dedicam a brincar. Estima-se que a quebra nos últimos 30 anos se situe nos 25%, incluindo no pré-escolar.

A passagem para ambientes cada vez mais urbanos também aumentou a supervisão parental, por razões de segurança. Mais de metade das crianças em todo o mundo vive agora em meio urbano, vendo reduzida a possibilidade de brincarem em espaços ao ar livre. No dia em que fiz 6 anos, passei a ser autónoma no caminho casa/jardim-de-infância, que distam meio quilómetro entre si, sendo ainda responsável por levar comigo a minha irmã de 4 anos. É certo que foi numa pequena cidade na Beira. Hoje em dia, num grande centro urbano, seria considerado negligência parental! Em Hong Kong um estudo revelou que as crianças passam menos tempo em actividades ao ar livre do que os prisioneiros, apesar de noutro estudo envolvendo 16 países a maioria das mães referirem que os seus filhos eram mais felizes quando brincavam em actividades de exterior.

Com isto não pretendo sugerir que alguma supervisão parental e apoio na estruturação das actividades das crianças são práticas inadequadas. Mas, como a psicóloga desenvolvimentista Elizabeth Bonawitz evidenciou, quando as crianças seguem instruções nas suas brincadeiras não aprendem o mesmo como ao brincarem de forma não estruturada pelos adultos. Brincar resulta melhor quando é feito de forma livre, por iniciativa das próprias crianças, em vez de ser programado durante um certo período de tempo e prescrito e supervisionado por adultos.

Qualquer intervenção que promova o brincar deverá ter em conta as suas características e permitir flexibilidade, imprevisibilidade e segurança suficientes para que as crianças o possam fazer de forma livre. As brincadeiras das crianças pertencem às crianças! Os adultos não devem destruir os locais de brincadeira das crianças através de um planeamento insensível ou, mesmo inconscientemente, para corresponder à agenda de outros adultos, ou ainda criando lugares e programas que segregam as crianças e controlam as suas brincadeiras.

As boas notícias é que as crianças são como o Houdini! Elas escapam e contestam as definições, limites e regras que os adultos lhes impõem ao brincar. Não importa o quanto os graúdos interfiram, os miúdos encontrarão sempre forma de brincarem de forma livre, mesmo em tempos difíceis. Como diria José Saramago “e se as histórias para crianças passassem a ser leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?” Nenhum ser humano, independentemente do seu nível de desenvolvimento, é tão ignorante que nada possa ensinar, nem ninguém é tão sábio que nada tenha para aprender! Todos improvisamos!

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