A racionalidade e o bom senso
Muitas das reticências e desacordos entre o Governo e os partidos à esquerda radicam na submissão a uma agenda que não tem legitimidade democrática nem legal.
Foi anunciado com pompa em mensagem dominical, apesar de não ser um segredo bem guardado. Marques Mendes desvendou que António Costa nunca poderia aceitar as propostas dos partidos à esquerda sobre matérias laborais, pois isso seria inaceitável para a “Europa”. Essa entidade abstrata, que tem na Comissão Europeia e no Conselho Europeu a ponta do icebergue, seria o fantasma que paira sobre os países, assombrando quem queira defender os trabalhadores. Olhemos para Espanha, afirmou o comentador, que não tem o seu PRR aprovado porque teima em insistir em reformas laborais.
Confesso que não encontrei nada nos tratados europeus que impeça os países de alterarem a sua legislação laboral e defenderem os direitos dos trabalhadores. Seria estranho que a Comissão Europeia se guiasse por leis sombra para restringir as escolhas de governos democraticamente eleitos. E é também verdade que, ao contrário do que foi anunciado pelo comentador, a Espanha já aprovou o seu PRR, mantendo a intenção de introduzir mudanças profundas na legislação laboral em matérias tão relevantes como a contratação coletiva. Mas a ideia de essas regras não escritas pairarem sobre os países com menos poder persiste.
Sobre essa matéria, o primeiro-ministro português afirmou a meio da semana que não havia qualquer compromisso sobre leis laborais com as instituições europeias. Estaríamos livres desses fantasmas, poder-se-ia pensar. Mas o problema é que a realidade parece bem diferente. Em vários momentos, sempre que confrontados com mudanças nas leis laborais, membros do Governo ou dirigentes do PS respondem que isso iria chamar a atenção das instituições europeias: ficaríamos no radar da Europa. Entenda-se que nesta afirmação “estar no radar” é uma coisa má, pois o que interessa é passar de fininho. Triste visão da Europa e ainda mais triste visão da nossa posição na Europa.
Esta introdução é necessária pois dá o contexto para os vários debates que acompanham a negociação do Orçamento do Estado para 2022. Muitas das reticências e desacordos entre o Governo e os partidos à esquerda radicam nesta submissão a uma agenda que não tem legitimidade democrática nem legal, mas que amedronta os governantes. Vejamos as propostas do Bloco de Esquerda na matéria laboral e as diferenças para o que o Governo propõe:
O Bloco de Esquerda propõe a reposição da compensação por despedimento em trinta dias por ano de trabalho, como vigorou até à intervenção da troika. Desta forma, protegendo o trabalhador ficaria mais protegido o emprego. Ora, a resposta do Governo é de admitir apenas a reposição nos casos de caducidade de contrato a termo (2 dias por mês de trabalho). Porquê? Porque nas métricas europeias não é analisada a compensação por despedimento dos contratos a prazo, apenas a dos contratos por tempo indeterminado.
A reposição do pagamento por trabalho suplementar (o valor pago por horas extraordinárias) tem uma resposta do Governo que só pretende mexer-lhe (e mesmo assim sem eliminar por completo o corte da troika) quando já foram ultrapassadas as 120 horas extraordinárias em cada ano. Já no direito ao descanso compensatório, que também foi alvo de corte pela troika, não há qualquer cedência. Na reposição dos 25 dias úteis de férias por ano, recuperando até o que foi uma proposta feita por António Guterres, o Governo rejeita liminarmente a ideia. Em todas estas matérias é a receção das mexidas em Bruxelas que serve de justificação para o Governo.
No que toca à reposição do princípio do tratamento mais favorável, que defende que entre a lei e o contrato vale aquele que melhor proteger o trabalhador, o Governo diz não, defende que continua a mandar a troika. E coisa similar acontece na contratação coletiva, em que o Governo prefere andar de moratória em moratória do que acabar de vez com a caducidade que ameaça os direitos dos trabalhadores. Novamente, isto acontece porque as moratórias não estão no radar, enquanto as mexidas na lei não passam sem fazer ondas.
É na submissão a esta Europa que não está prevista nos tratados que parte das divergências se acumulam à esquerda. Não foi sempre assim: em 2015 e 2016 António Costa e o PS não aceitaram a pressão europeia que queria impedir o aumento do salário mínimo. Bem sei, esse era o tempo da “geringonça” e o período em que António Costa precisava da esquerda para ser primeiro-ministro. Mas manda a racionalidade e o bom senso que um Governo minoritário não desaprenda de negociar.
Pedro Filipe Soares é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico