Crianças nas touradas: uma violência a abolir
Num debate sério sobre as touradas, cuja abolição há muito já deveria ter ocorrido, para além do incontornável sofrimento do animal, não pode ficar esquecido o sofrimento e a angústia das crianças. As crianças não têm culpa nem podem continuar a ser utilizadas como forma de perpetuar algo que está profundamente errado e que não nos valoriza como povo.
Finalmente, o Governo decidiu aumentar a classificação etária dos espectáculos tauromáquicos para “maiores de 16 anos” no âmbito de uma exigência do grupo parlamentar do PAN e invocando o cumprimento das determinações do Comité dos Direitos da Criança da ONU, que já por duas vezes tinha alertado para este problema, e instado Portugal a estabelecer a idade de 18 anos, sem excepção, para assistir ou participar em touradas, no âmbito daquela que é a Convenção de Direitos Humanos mais consensual no mundo.
Acima dos gostos pessoais, das tradições e da cultura está um princípio fundamental na nossa sociedade, que é a defesa do superior interesse da criança. Um princípio que alguns parecem querer desvalorizar, expondo as crianças a um ritual que contraria os princípios básicos do respeito pelos animais, provocando-lhes dor e sofrimento, para além dos inúmeros acidentes que ocorrem durante a actividade com as pessoas envolvidas. Uma violência bem real e não ficcionada.
A medida tem sido amplamente saudada, mas há quem continue a colocar outros interesses à frente do superior interesse das crianças, defendendo que as mesmas devem continuar a ser expostas à violência da tauromaquia.
Que os adultos se queiram divertir, perpetuando uma tradição anacrónica de agredir animais numa arena circular, isso é bastante questionável por se tratar de um espectáculo público que colide com princípios cada vez mais valorizados na nossa sociedade, que não é, nem deve ser, indiferente ao sofrimento animal. Mas que as crianças tenham que ser expostas a isso, e tenham que ser sujeitas a um processo de insensibilização para o sofrimento dos animais, como se fosse perfeitamente normal e aceitável aplaudir animais em sofrimento e a jorrar vários litros de sangue numa arena, é algo indefensável e que a maioria dos portugueses não só não entende, como tem a clara noção de que tal é uma violação do superior interesse da criança.
Acresce que para além das touradas, ainda que possam ser vistas sob a égide de de um direito cultural, este direito não só não é absoluto, como encontra cada vez menos adesão social. Actualmente mais de 85% dos municípios portugueses não têm praças de touros, ou deixaram de acolher espectáculos tauromáquicos, segundo os dados da IGAC. As touradas estão cada vez mais confinadas à região de Lisboa, Vale do Tejo e algumas localidades Alentejanas. No resto do país são uma prática exótica, cada vez mais repudiada.
Apesar de nunca ter tido qualquer relação com esta tradição, como a esmagadora maioria da população portuguesa, assisti como observador a várias touradas nos últimos anos, e presenciei vários episódios marcantes nas bancadas das praças de touros. Um deles foi particularmente grave, por ter acontecido no centro de Lisboa numa tarde de domingo, e com a participação de várias crianças, alunos das tais “escolas de toureio” que continuam a funcionar sem limites de idade.
Nessa tarde, crianças com idades entre os seis e os 16 anos arriscavam a vida na arena do Campo Pequeno, lidando novilhos em pontas, com peso e força suficiente para matar um adulto, enquanto cá fora as pessoas passeavam tranquilamente nos jardins envolventes e no centro comercial situado mesmo por baixo da arena, sem a mínima noção do que estava a acontecer dentro daquele espaço. Foi emocionante? Sim, mas não de forma positiva. É chocante assistir a um grupo de crianças a colocar a sua vida em risco, muitas delas vítimas de colhidas bastante aparatosas, levadas e incentivadas por um grupo de adultos na trincheira e nas bancadas. É até contranatura que um pai ou uma mãe permitam que um filho seja exposto a tal risco ou à violência cruel desta actividade.
A imagem de crianças em frente a um novilho em pontas que, a qualquer momento as pode matar, deixa o público siderado na arena, literalmente com o coração nas mãos, suspirando e vibrando a cada passe e a cada bandarilha cravada com sucesso, esquecendo-se do óbvio: que o lugar daquelas crianças não é ali. Nem tão pouco dos touros.
Uma das crianças que entrou na arena, com apenas 12 anos, saiu de rastos e teve que lutar para conseguir saltar para a trincheira. Acabou por sair apressadamente na maca dos socorristas da Cruz Vermelha em direcção ao hospital, com várias lesões no corpo, debaixo de uma pequena audiência em absoluto estado de pânico e ansiedade. Isto aconteceu num recinto que (pasmem-se!) é propriedade da Casa Pia, uma instituição que tem, ou deveria ter, a nobre missão do auxílio e protecção das crianças, todas sem excepção, incluindo as que são levadas a uma corrida de touros.
A meio da demonstração infantil de toureio, uma criança com cerca de três anos, que estava nas bancadas atrás de mim, vomitou nas minhas costas. Estava acompanhada pelos pais e por mais dois irmãos, um pouco mais velhos. Podia pensar-se que a criança se sentiu mal pela quantidade de sangue que escorria do corpo do animal, ou pelo sangue que ensopava a roupa dos pequenos toureiros. No entanto, fiquei com a clara convicção que a situação da criança foi agravada pelo elevado estado de ansiedade e, nalguns momentos de verdadeiro pânico, da mãe que estava sentada ao seu lado. Este é um aspecto que nunca vi abordado pelos especialistas, porque a maioria deles desconhece o elevado grau de violência que se experimenta numa tourada, e que vai muito além do espetar lâminas no corpo de um animal.
Mas foi quando saí do interior daquele recinto, e voltei a encarar o ambiente tranquilo e sano daquela tarde, que me invadiu uma estranha sensação de ter viajado no tempo e presenciado algo muito grave. Foi uma bizarra sensação, ver aquelas pessoas a passear num domingo à tarde, sem imaginar que dentro daquela praça corria sangue, inclusive sangue de crianças apanhadas desprevenidas pela fúria de um animal enraivecido e cravado de lâminas que lhes rasgavam o corpo. Ainda por cima, em violação clara da lei que protege as crianças deste tipo de situações.
Não é um ambiente saudável e, inquestionavelmente, não é um ambiente saudável e adequado para as crianças. Durante as minhas experiências nas bancadas das praças de touros ouvi todo o tipo de comentários e perguntas que demonstram isso mesmo, e que deixavam os adultos sem resposta, embaraçados sem conseguir uma explicação lógica para aquela insanidade. “Ó mãe, porque é que não levam o touro para o hospital?”, “O touro vai morrer ou vai ser curado?” ou “Porque é que estão a bater no touro?” são apenas alguns exemplos de como um aficionado das touradas pode ficar encurralado entre dois mundos incompatíveis.
Um conhecido ganadeiro dizia que o som das ambulâncias dava mais emoção à festa brava, mas como se explica a uma criança que é errado maltratar animais, como já faz actualmente a nossa polícia, sensibilizando-as para o respeito pela vida animal, e ao mesmo tempo, aplaudir com entusiasmo uma pessoa que crava com extremo vigor um par de bandarilhas no lombo de um animal?
As touradas estão encurraladas num beco sem saída, e já tarda que seja arrumado nas páginas da História um divertimento cruel e de grande malvadez, disfarçada com o som do cornetim, os trajes festivos ou o brilho das luzes.
Foi assim no Porto na viragem do século, em toda a região Norte e em muitas vilas alentejanas onde se aboliu esta prática anacrónica.
Num debate sério sobre as touradas, cuja abolição há muito já deveria ter ocorrido, para além do incontornável sofrimento do animal, não pode ficar esquecido o sofrimento e a angústia das crianças. As crianças não têm culpa nem podem continuar a ser utilizadas como forma de perpetuar algo que está profundamente errado e que não nos valoriza como povo. E menos ainda a cada ferro que as fazem cravar no animal ou a cada tourada que as fazem presenciar, dar um passo atrás na conquista dos seus direitos, no seu superior interesse, que deve sempre prevalecer, incluindo a um desenvolvimento sadio e equilibrado, livre de qualquer forma de exposição à violência.
Avancemos.