O direito e o dever de reparar produtos
Porque tenho de ser obrigada a substituir, para trabalhar, equipamentos que poderiam perfeitamente durar-me por muito tempo? A resposta a esta pergunta é muito importante, não apenas de uma perspetiva de proteção dos direitos dos consumidores, mas por uma questão de responsabilidade ambiental.
Porque é que tantos dos produtos que compramos vão parar ao lixo ao primeiro problema, sendo imediatamente substituídos por outros? Há uma narrativa que nos tenta convencer de que a culpa é nossa, da sociedade, que nos habituámos a uma cultura de comprar e descartar, sem sequer contemplarmos a hipótese da reparação. Mas os factos contam-nos outra história. De acordo com um inquérito divulgado em abril deste ano, no âmbito da campanha europeia Right to Repair (Direito a Reparar), 77% dos cidadãos europeus preferiam reparar os seus dispositivos eletrónicos a substituírem-nos, caso lhes fosse dada essa possibilidade.
O problema, conclui-se assim, não está tanto no querer, mas, sobretudo, no poder. E o que está a retirar esse poder aos consumidores, nomeadamente no caso da eletrónica, é um conjunto de barreiras que tornam tão dispendiosa e complexa a simples substituição de uma peça que estes muitas vezes não têm outra opção que não seja passar para o produto seguinte.
Desde logo, muitos fabricantes continuam a recusar-se a fornecer manuais para reparação, invocando argumentos jurídicos relacionados com a proteção de patentes. Argumentos que muitas vezes não têm qualquer razão de ser. Em primeiro lugar, porque existem formas de produzir estes manuais sem ter de libertar segredos de produção e, em segundo, porque as marcas já têm mecanismos legais para se protegerem e, caso necessário, serem ressarcidas do uso indevido de patentes.
Somada essa questão ao facto de as peças de substituição originais serem raras e, frequentemente, tão caras que somadas à mão-de-obra não justificam a reparação, só podemos ser levados a concluir que existe por parte de quem produz uma clara intenção de dissuadir a reparação. Quem, por exemplo, já tentou substituir o ecrã partido de uma smart TV, saberá do que falo.
A isto acresce ainda a chamada “obsolescência programada” dos produtos. Ou seja: o fabrico com a clara intenção de que o equipamento tenha um ciclo de vida relativamente curto pré-programado, a partir do qual vai perdendo capacidades ou se torna obsoleto. Eu tenho dois telemóveis. Um deles, já bastante antigo, funciona muito bem, tem a bateria ainda em bom estado, mas já é impossível de usar com algumas das aplicações de que preciso para trabalhar no meu dia a dia. O outro, que a mim parece novo, tem cerca de dois anos. Mas a bateria já começou a dar problemas e certas atualizações de software já estão para lá do seu alcance. Porque tenho de ser obrigada a substituir, para trabalhar, equipamentos que poderiam perfeitamente durar-me por muito tempo?
A resposta a esta pergunta é muito importante, não apenas de uma perspetiva de proteção dos direitos dos consumidores, mas por uma questão de responsabilidade ambiental. Os europeus compram, todos os anos, cerca de 200 milhões de telemóveis. Por cada um que é fabricado, estima-se que tenham de ser extraídos da terra 37 quilos de minérios em bruto. A produção de telemóveis consome cerca de 11% da energia utilizada por todas as tecnologias ligadas à Internet. E representa também uma fatura pesada em termos de emissões de CO2, sobretudo durante o processo de fabrico.
Não é por acaso que, para a União Europeia, a reparabilidade dos produtos assume uma importante dimensão ambiental, visível em documentos como a Iniciativa Produtos Sustentáveis e o regulamento do Ecodesign. E o mesmo se aplica à reutilização de peças de equipamentos. Mas até que as novas regras cumpram os trâmites necessários para a sua entrada em vigor, é importante que os Estados-membros comecem desde já a adotar medidas para assegurar a sua eficácia. Desde logo, recuperando toda uma comunidade associada às reparações que se tem vindo a perder ao longo dos anos.
Muitos de nós ainda se lembram de um tempo em que os produtos, eletrodomésticos ou outros, se avariavam, e havia sempre quem os reparasse. Hoje, faltam-nos pessoas qualificadas para mão-de-obra de reparação. E deveríamos começar a trabalhar em recuperá-la, por exemplo através de cursos profissionais e dos cursos médios de engenharia. Fazê-lo, além de proteger os consumidores e o ambiente, irá criar empregos locais, ocupações locais, porque não precisamos destes serviços apenas nos grandes centros urbanos. Aliás, e contrariando outra tese de quem se opõe a estas políticas, existem estudos que demonstram que o número de empregos criados com políticas desta ordem seria superior ao daqueles destruídos devido ao aumento do tempo de vida dos equipamentos.