Mais do que a felicidade, as pessoas procuram não se magoar
A felicidade poderá até ser uma soma de verbos simples, mas é preciso somar bastante para compensar potenciais perdas. Ser feliz dá trabalho! Muito! Cá dentro! De cada um de nós!
“Eu lembro-me melhor das coisas más do que das boas! Também te acontece?”, questionou-me uma adolescente. E eu fiquei sem resposta imediata para lhe dar. Talvez porque o que gostaria de lhe dizer era que não, mas sabia que sim. O que me incomodou.
O psicólogo Daniel Kahneman, Nobel da Economia, propôs um estudo científico para testar em que situações uma emoção seria mais forte, concluindo que os participantes que imaginavam ter perdido dinheiro tinham uma reacção emocional significativamente mais intensa do que os que pensavam na possibilidade de serem premiados, sendo o fenómeno designado por aversão à perda. Estes resultados apoiam o chamado viés da negatividade, tão explorado nos dias que correm pelos algoritmos presentes no mundo online. Quando ocorre um acontecimento desagradável/aversivo ele é armazenado mais facilmente na memória a longo prazo e a informação negativa também é mais facilmente invocada pelo cérebro. Por isso registamos mais depressa e recordamos mais intensamente uma humilhação do que um elogio.
O cérebro humano tem uma propensão para sobrevalorizar as experiências negativas que nos fazem sofrer. Consequentemente é mais provável que tentemos evitar uma perda do que obter um ganho. Mais do que felicidade as pessoas procuram não se magoar, por uma questão de sobrevivência. A felicidade poderá até ser uma soma de verbos simples, mas é preciso somar bastante para compensar potenciais perdas. Ser feliz dá trabalho! Muito! Cá dentro! De cada um de nós!
Todas as pessoas, mesmo as mais tranquilas, guardam na memória o momento de um terramoto pessoal que sabemos descrever ao pormenor. Mas e quando se sofre uma descontinuidade na vida? Quando se sente desacertado e nada alivia uma dor sem prazo de validade à vista? Quando se vê a vida roxa, um peso insuportável sobre os ombros, os sonhos com cheiro a cinzas, as palavras desafinadas em dueto com os silêncios gritantes e o sabor amargo do eu sem mim? E quando os problemas de saúde psicológica nos batem à porta?
As pessoas que têm problemas de saúde psicológica são iguais a quaisquer outras, com a mesma aparência, que sorriem e desempenham uma série de tarefas no dia-a-dia. Talvez por isso seja tão difícil tomar consciência, reconhecer, aceitar e se sofra tanto em silêncio. Conselhos como “tens tanta coisa boa na tua vida, porque é que não te agarras a isso?”, “dorme que amanhã já passa” ou “não te estás a esforçar o suficiente” - alguém diz isto a uma pessoa com cancro, diabetes ou tetraplégica? Esta não é uma forma de ajuda, mas sim a expressão da ignorância, do preconceito e a incapacidade de aceitação da doença mental.
O estigma que ainda prevalece, parcialmente resultante da baixa literacia neste domínio, gera muitas vezes sentimentos de culpa por parte de quem sofre de problemas de saúde psicológica, por algo que não está inteiramente dependente de si. Estes problemas não são raros. Estima-se que afectem 23% da população portuguesa, atingindo-nos a todos, directa ou indirectamente. Qualquer pessoa os pode desenvolver! Ninguém é imune! E, tal como os adultos, estima-se que 1 em cada 5 crianças/adolescentes manifeste dificuldades desta natureza, sendo aliás um dos principais preditores de problemas de saúde psicológica na vida adulta.
Outra distorção comum é considerar-se que, ou se tem um problema, ou se é psicologicamente saudável. O tudo ou nada! Mas, tal como a saúde física, também neste domínio existe um continuum em termos de gravidade e de longevidade, sendo certo que não existem categorias superiores de doença mental. Quem poderá ter a veleidade de determinar a hierarquia da lâmina que nos corta cá dentro? Cada um saberá a dor que comporta, em cada momento, cabendo aos restantes apenas imaginá-la.
As pessoas com problemas de saúde psicológica também não são necessariamente violentas, perigosas, não confiáveis e imprevisíveis. Muitas pessoas violentas não têm antecedentes de dificuldades desta natureza e a maior parte dos que sofrem com problemas de saúde psicológica não apresenta historial de violência. Têm até muito mais probabilidade de serem vítimas de violência e crime do que as suas perpetradoras.
E o que dizer do mito de as pessoas com estes problemas não conseguirem ser funcionais ou da suposta impossibilidade de recuperação? A doença, seja de que natureza for, não é o aspecto central da identidade de ninguém! É possível aprender a lidar com as dificuldades e existem tratamentos psicológicos disponíveis e custo-efectivos que podem ajudar as pessoas a lidar com os seus sintomas. Os problemas de saúde psicológica não são “sentenças de prisão perpétua”! A maior parte das pessoas recupera inteiramente e vive de forma plena e produtiva.
No entanto, sem o devido apoio psicológico, e dependendo da gravidade do problema, pode ser difícil para algumas pessoas, nalgumas situações, manterem a sua vida quotidiana. E aqui reside o cerne da questão. Pese ainda o longo caminho que há a percorrer, há progressos assinaláveis nos últimos tempos, em especial pandémicos, no que diz respeito ao aumento da literacia em saúde psicológica e a consequente redução do estigma. Contudo, quase tudo estará ainda por fazer no acesso dos portugueses a ajuda profissional continuada e de qualidade. No nosso país a equidade desse acesso está sobretudo dependente do dinheiro que cada um tem no bolso! Ou é um quadro psicopatológico considerado grave ou esse tipo de acompanhamento é praticamente inexistente no sector público, conduzindo a uma deterioração do estado de saúde mental de cada um, sendo por vezes a referenciação feita tão tarde que a patologia já se instalou.
No mês em que se assinala a saúde mental, haja um olhar mais humano sobre o parente pobre da saúde. Que a dor do outro, mesmo não compreendida em toda a sua extensão, não nos seja invisível!