Direitos LGBTI na última década: da igualdade legal a um quotidiano sem medo
No 10.º aniversário do P3, estendemos o Megafone a dez vozes para falarem de dez causas. O que mudou numa década? Como será a próxima? Jorge Gato, doutorado em Psicologia, reflecte sobre a igualdade de direitos para pessoas LGBTI nos últimos dez anos.
A igualdade de direitos para pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexuais) é recente em Portugal. Seria preciso esperar pela segunda década do presente século para que a paridade legal chegasse finalmente a vários domínios concretos da vida das pessoas LGBTI. Entre estes marcos legislativos destaca-se a igualdade no acesso ao casamento civil, em 2010, a eliminação das discriminações no acesso à adopção por parte de casais do mesmo sexo, em 2016, o alargamento das técnicas de procriação medicamente assistida a todas as mulheres, pondo termo à discriminação em função da orientação sexual e do estado civil (também em 2016), e o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à protecção das características sexuais de cada pessoa em 2018.
Desde 2018, o país dispõe também de uma Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, que inclui expressamente nos seus objectivos estratégicos e específicos o combate à discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais. Perante todos estes avanços, não é de surpreender que Portugal ocupe em 2021 a quarta posição no Rainbow Map, um relatório anual que classifica e analisa a situação jurídica e política das pessoas LGBTI em 49 países europeus.
Mas até que ponto é que esta progressiva igualdade se tem traduzido em mudanças reais no quotidiano das pessoas LGBTI? Por um lado, foi notória, ao longo dos últimos dez anos, a abertura paulatina do país à diversidade sexual e de género e à celebração dos direitos humanos LGBTI. Sinal disso é a multiplicação de marchas do orgulho e de associações de defesa dos direitos das pessoas LGBTI em várias cidades do país (inclusive no interior e nas regiões autónomas), o número crescente de bandeiras arco-íris hasteadas em câmaras municipais (com ruidosas excepções como é o caso da segunda cidade do país), juntas de freguesia e outras instituições e, pese embora ainda raras, as cada vez mais frequentes saídas do armário de figuras públicas e o concomitante aumento da visibilidade das pessoas LGBTI nos meios de comunicação social.
Por outro lado, não obstante todas estas mudanças positivas, o preconceito e a discriminação ainda se fazem sentir no dia-a-dia das pessoas LGBTI em Portugal. Os dados recentes do inquérito europeu da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia são bastante eloquentes a esse respeito. Assim, embora se tenham registado alguns avanços relativamente a 2013, em 2019 as pessoas LGBTI sofriam ainda elevados níveis de preconceito e a discriminação em várias áreas da sua vida. A título de exemplo, das 4294 pessoas LGBTI portuguesas que reponderam a este inquérito, 30% referiram que já tinham sido assediadas devido à sua orientação sexual, uma em cada cinco referiu não ter reportado agressões físicas e/ou sexuais às autoridades policiais por temer possíveis atitudes homofóbicas por parte da própria polícia, seis em cada dez reportaram que nunca ou raramente davam as mãos à parceira ou ao parceiro na rua com medo de ser agredidas/os, ameaçadas/os ou assediadas/os e 65% nunca ou raramente expunham a sua orientação sexual ou identidade de género. De ressaltar ainda que, dentro do grupo LGBTI, foram as pessoas com identidades trans e intersexuais que reportaram experiências mais negativas.
Muitos são os desafios colocados por este cenário de crescente igualdade legal, progressiva visibilidade social mas também de persistente discriminação, particularmente num contexto em que assistimos novamente a um aumento da repressão política contra as pessoas LGBTI a nível mundial e em alguns países europeus, à propagação dos discursos de ódio online, à ascensão de partidos de extrema-direita com uma agenda anti-igualitária, sem esquecer o aumento das dificuldades socioeconómicas decorrentes da pandemia.
O progresso não é, pois, linear e, mais do que nunca, é preciso garantir não só a igualdade legal plena, mas acções concretas no terreno que permitam que todas as pessoas LGBTI se possam sentir confortáveis para dar as mãos na rua, para entrar numa esquadra sem medo de apresentar queixa, para contar no trabalho como foi o seu fim-de-semana sem receio de ser despedidas, ou para namorar no pátio da escola: no fundo, para viver sem medo. Para que esta realidade se concretize, para além de medidas concretas (desde a efectivação do que já está legalmente previsto até à aprovação de novas leis igualitárias como, por exemplo, a proibição das “terapias” de conversão), é fundamental um exercício permanente de cidadania e de respeito pelos direitos humanos, por parte de todas as pessoas. São também as mães, os pais, os/as familiares, os/s colegas de escola ou trabalho e as próprias pessoas LGBTI que estão em lugares de privilégio social e económico, os/as responsáveis por uma sociedade mais justa e igualitária onde todas e todos possam existir sem medo.