Assim se tomba um gigante
Às vezes, a História tem hora marcada. Quando assim é, a multidão arrasta-se para ser testemunha de alguma coisa que não mais se repetirá e que permanecerá na memória de milhões de pessoas. A ocasião pode ser solene, trágica, eufórica, e a multidão comporta-se de acordo com aquilo que espera. E a multidão no estádio Arthur Ashe, em Nova Iorque, comportava-se como se soubesse que um tenista iria, naquela noite, tornar-se no melhor de sempre.
A História tinha hora marcada: Novak Djokovic, para muitos o melhor tenista de todos os tempos, estava a meras horas de conseguir a marca épica de 21 títulos do Grand Slam, uma espécie de Liga dos Campeões da modalidade. Era a hora da final do Open dos Estados Unidos. Pela frente, um rapaz moscovita, Daniil Medvedev, muito bom jogador, mas que não haveria de conseguir grande feito diante do deus sérvio. Ou pelo menos assim esperavam os milhões de pessoas de olhos postos naquele court.
Acontece que a História, mesmo quando é planeada, nem sempre corre como imaginávamos. Djokovic, talvez por cansaço pelas duas últimas semanas (o sérvio passara mais cinco horas no court do que o russo), talvez pelo peso da responsabilidade de corresponder ao epíteto de O Melhor de Todos os Tempos, começa a tremer desde cedo. Concede pontos cantados, comete erros de principiante, faz bolas fáceis esbarrar na rede. Aos poucos, e à vista do mundo, o gigante despedaça-se.
O descontrolo é cada vez mais notório, à medida que o encontro avança. O público ainda grita por ele, encoraja-o, mas também sem grande convicção, como se perguntasse: “Quem és tu e o que fizeste ao nosso Djokovic?” O atleta esmerado de mentalidade de ferro não está ali, de certeza que alguém o raptou e o tem detido numa qualquer cave nova-iorquina. pela qual era conhecida tinha ficado esquecida no hotel. Este não é, não pode ser, Djokovic.
No ténis, a esperança é mesmo a última a morrer. Por não haver limitação de tempo – a regra que está estipulada é esta: o primeiro jogador a vencer dois (ou, no caso de um Grand Slam, três) sets, vence o encontro -, um tenista pode estar a um ponto de perder um campeonato e, se o salvar, continua a ser possível e verosímil que vire o resultado a eu favor, nem que para isso tenha de passar mais três horas no court. O público sabe isso, e mantém-se expectante.
Mesmo acreditando que aquele não é Djokovic – até ao momento em que o sérvio, furioso consigo mesmo, estilhaça uma raquete no chão, à força da porrada. Ah, afinal é mesmo o Djokovic. Dá para perceber pelo sangue a latejar nas têmporas e pelo estado da ex-raquete. O juiz da partida dá-lhe uma advertência, como mandam as regras, e Djokovic sabe que, além de estar a perder o jogo mais importante da sua vida, também perdeu vinte mil euros, o custo da multa por abusar do seu equipamento de jogo.
O que é impressionante na História é que a História também pode dar cambalhotas no sentido que o povo mais deseja. E, por isso, talvez se veja aqui um renascimento de Djokovic, uma força renovada agora que a fúria já se despejou num objecto de carbono que não terá muito mais do que 300 gramas. Mas não. A confiança de Djokovic está no charco, e agora nós começamos a duvidar da nossa própria sanidade mental – ou, se calhar, se tivemos o azar de deixar cair um ácido no vinho.
As dez mil pessoas no estádio começam a esmorecer quando Djokovic demonstra uma postura derrotada. Já mal corre, é displicente a disputar bolas, como se se tivesse esquecido de que isto não é futebol e que não faltam cinco minutos para os noventa, com o resultado a dar um 7-1 para a Alemanha.
Não, homem, tu podes virar isto, anda. Pelo menos, vê lá se dás um bocado de luta, que estas pessoas estão aqui para ver um épico de cinco horas. Não seria a primeira vez que Djokovic viraria um resultado assim, nem a segunda nem a terceira. A fama precedia-o, e a ex-glória Andy Roddick bem o disse num tweet há meia dúzia de dias: quando precisa mesmo de uma vitória, «primeiro destrói-te as pernas e depois destrói-te a alma». Por estas e por outras é que este público não está preparado para ver Djokovic ser derrotado nuns míseros 126 minutos.
Por isso, um último incentivo, quando a partida está num momento crítico. Das bancadas, grita-se o nome carinhoso de Djokovic, “Nole, Nole, Nole!”. E depois, História: o homem olha em volta, sorri, atira a toalha ao rosto e chora convulsivamente. Os seus ombros soluçam incessantemente e, quando deixa cair a toalha, vemos-lhe a vermelhidão nos olhos. “Time”, anuncia o juiz, dizendo que está na hora de disputar os pontos derradeiros que salvarão ou sentenciarão o melhor de sempre.
Quando Djokovic está pronto para receber o serviço de Medvedev, o realizador (rato!) ordena que se faça um close-up no rosto do sérvio e vemos que ainda há lágrimas nos seus olhos. O público não faz o silêncio que se quer numa partida de ténis, grita por Nole e Medvedev espera que o ruído se torne aceitável para recuperar a concentração. Mas os gritos prolongam-se, e Medvedev já não está só a jogar contra o melhor – está também a combater um estádio inteiro. A esta hora, Medvedev é o homem mais solitário do mundo.
A síndrome do adepto é tramada: estando a torcer por um atleta ou por um clube, parece nunca haver o mérito alheio. É sempre uma de duas: ou o Benfica ganhou, ou o Benfica perdeu. Ou o Djokovic ganhou, ou o Djokovic perdeu. Eis a visão mais acertada: se Djokovic perder, o mérito está do lado de lá daquela rede. O moço façanhudo, Medvedev, apesar de ser recente nestas lides (ainda há dois anos andou à bulha com este mesmo público, para no final do Open de 2019 fazer as pazes e ser adorado pelos nova-iorquinos), está a dar uma lição de ténis ao astro. Faz ás atrás de ás, chega a todas as bolas, especialmente àquelas que pareciam impossíveis de alcançar, demonstra uma tranquilidade que não seria de esperar para um catraio de 25 anos. Eis uma epifania, a este ponto da partida: o tomba-gigante não é um David. É o número dois mundial. E é por isso que fez gato-sapato do rei da porra toda e está prestes a despachar a promessa de História em três sets. Limpinho, limpinho, como diria o outro.
Medvedev mal parece acreditar que isto aconteceu, especialmente nestas circunstâncias: numa final de um Grand Slam em que se poria um ponto final no debate sobre quem é o melhor de todos os tempos, se Federer, se Nadal, se Djokovic. Os dois jogadores abraçam-se junto à rede e Medvedev segreda um “I’m sorry”. Sorri para o deus Nole, que ainda está choroso, e recebe palavras de encorajamento. Minutos depois, no discurso de entrega do troféu, Medvedev está-se nas tintas para polémicas e diz o que tem de ser dito: «nunca disse isto a ninguém, Novak, mas tu é que és o melhor de todos os tempos». É nestas coisas, e não exactamente nos ases mortíferos nem nas esquerdas eficazes, nem sequer nas taças, que se vê quem é o maior.