Jorge Sampaio: um príncipe republicano
Por todas as qualidades, considero que Jorge Sampaio foi talvez o único príncipe que conheci.
Um testemunho
“Quando olho para trás, para a minha longa vida pública, o que emerge não são feitos passados, mas a preocupação com o futuro. Sempre me disseram que sou um homem preocupado. Assumo que sou um homem inquieto.”
Este não é o texto de um colega, de um camarada de partido, de um compagnon de route. Este também não é o texto de alguém que privou com o dirigente associativo, com o presidente de câmara ou com o Presidente da República. Conheci e colaborei com o “ex-tudo isso”, porventura mais desprendido e solto.
Na verdade, conheci Jorge Sampaio já este tinha cessado funções presidenciais há sete anos. Lembro-me bem do dia em que aconteceu, em meados de outubro de 2013, a pedido do grande advogado e bom amigo José Manuel Galvão Teles, que me incumbiu de uma missão, sobre a qual já aqui escrevi (“A admirável missão Sampaio, in PÚBLICO, 13 de setembro 2015): conceber juridicamente uma Plataforma para apoiar os estudantes sírios, um dos grandes legados que o Presidente nos deixa.
A partir desse dia e até hoje, colaborei com o Presidente Jorge Sampaio na sua última causa. E devo dizer nenhuma tarefa me terá dado tanto prazer como esta, como aliás julgo que todos aqueles que com ele trabalharam dirão.
Trabalhar com ou, melhor, para Jorge Sampaio era um bálsamo. Dificilmente nos cruzamos com alguém do calibre do Presidente Sampaio: o trato, a educação, a serenidade, a graça. Para não falar da cultura vasta: literária, filosófica, histórica, musical (lembro-me agora, ao escrever, da satisfação com que recebeu um CD de Brahms que descobri numa feira e lhe ofereci). Na verdade, Jorge Sampaio teve sempre a capacidade de me surpreender pela envergadura que demonstrava em cada conversa. Muito rapidamente e em pequenos detalhes percebi que estava perante um homem especialmente preparado e dotado para chegar ao topo.
Nos 80 anos de Jorge Sampaio escrevi-lhe um texto, não publicado, com o título “Jorge Sampaio: a portuguese gentleman”. Fi-lo por identificar em Jorge Sampaio, um grande português, as características próprias de um gentleman: a forma de estar, em certa medida british, aliada, como então escrevi “a uma vocação, de origem materna, para o relacionamento com o Mundo anglófono – numa geração francófona”, que me fascinou. Tal como a simplicidade e forma de estar, próprias de um grande Senhor, que nos desarmava com um telefonema tão singelo como “a sua filha está melhor?”.
Como jovem interessado na política, nem sempre consegui concordar com o Presidente da República Jorge Sampaio, que acompanhava à distância de uma televisão. Mas não tenho quaisquer dúvidas: seja qual for o balanço da presidência de Jorge Sampaio e da sua ação política, é indubitável que a sua preparação para os cargos que ocupou era total. E que a sobre-humana dedicação que empenhou nas funções que exerceu resultava de uma preocupação – genuína – com o futuro de Portugal e da democracia. Razão, ainda hoje, de uma notória inquietação, que imediatamente o rejuvenescia ao conversar e pensar sobre o país e o seu futuro.
Sampaio tinha uma postura de vida que se pautava pela busca de consenso, tentativa da melhor solução, pela auscultação, a discussão, o diálogo. Não que isso significasse hesitação ou fraqueza: tenho a profunda convicção de que nos momentos-chave sabia precisamente o que queria. E isso foi bem visível nos episódios mais marcantes do seu percurso. Posso, aliás, partilhar que num momento especialmente complexo o procurei para obter conselho e dele recebi a força anímica e a garra próprias de um líder, habituado ao combate e à vitória, que com uma clareza lapidar me deu como única solução “não desistir” e “combater”, para “vencer”, como veio a suceder.
A minha diferença de idade face a Jorge Sampaio é de exatamente cinco décadas: nasceu em 1939 e eu 50 anos depois, em 1989; curiosamente, Jorge Sampaio foi Presidente da AAFDL entre 1960 e 1961 e eu exatamente 50 anos depois, entre 2010 e 2012. Podia essa diferença ter significado um legítimo distanciamento, inerente ao estatuto, vivência e sapiência do Presidente. Foi precisamente o contrário que senti, resumido no que lhe escrevi em vida: “cortesia e abertura para ouvir e dialogar com este jovem advogado, seja sobre matérias profissionais, seja sobre política e assuntos da atualidade, em simpáticos e longos encontros e almoços em que reina a cultura democrática (genuína), recheados de histórias e peripécias, com finais felizes, infelizes, cómicos ou surpreendentes, que só alguém com 80 anos ricos de vivências enquanto estudante, líder associativo, advogado, lutador antifascista, deputado, autarca, Presidente da República e filantropo poderia partilhar com tamanha verve.”.
Por todas as qualidades, considero que Jorge Sampaio foi talvez o único príncipe que conheci: aliava uma educação superior à cultura vasta, à serenidade nos momentos de tensão, ao controlo da voz, ao estudo dos dossiers, ao domínio da língua portuguesa e de outros idiomas (destaque para o inglês, podendo testemunhar que o fazia de improviso, como vi na chegada dos estudantes sírios às 5h da manhã, em que nos brindou a todos, em Figo Maduro, com uma mensagem de boas-vindas a Portugal, país que amava, que hoje lamento não ter gravado). Enfim, porventura dificilmente um príncipe de sangue conseguiria alcançar o nível de Jorge Sampaio.
Mas Sampaio foi também um republicano, convicto das virtudes da república como melhor sistema, defensor e aplicador da ética republicana, lutador pela democracia, democrata por fora e por dentro, na vida pública e nos discursos, mas também nos momentos não públicos (onde tantas vezes o democrata cai na tentação de autocrata…), com verdadeira confiança na “voz do povo”. E com uma vontade inabalável de servir o povo: o seu e os outros, os portugueses ou os sírios. A Humanidade, enfim. Pela convicção que tinha de que nasceu para servir os outros.
Jorge Sampaio deixa um legado pesado, na política e na solidariedade. Na política pelo exemplo republicano de serviço e entrega abnegada ao longo dos 82 anos de missão. Na política e na solidariedade, pela dedicação nas causas da erradicação das barracas e da pobreza, no combate à droga, à tuberculose, ao diálogo entre civilizações e ao seu admirável projeto de solidariedade, em prol dos estudantes afetados por cenários de guerra.
Que a República saiba honrar e dar continuidade ao legado de Jorge Sampaio.
Da minha parte, resta-me agradecer o privilégio que a vida me deu de o conhecer.
Obrigado, Presidente Jorge Sampaio.
O autor foi colaborador de Jorge Sampaio na Plataforma de apoio aos estudantes sírios