A imunidade de grupo também tem prazos
Em países como Portugal deixa de fazer sentido continuarmos a fazer contas à imunidade de grupo ao coronavírus que causou a pandemia.
Desde o início da pandemia da covid-19 que se fala em imunidade de grupo. O conceito é abstracto e julgo que ninguém em lugar nenhum soube utilizá-lo.
Uma população atinge o limiar da imunidade de grupo (LIG) quando a soma das imunidades de todos os seus indivíduos é tal que o vírus não consegue causar mais uma onda epidémica. Uma forma de visualizar uma medida aproximada disto é imaginarmos que a pandemia teria corrido sem qualquer mitigação e que teríamos tido acesso ao número de pessoas infectadas (e supostamente imunes ou falecidas) até que o número de casos atingisse o pico. Tipicamente expressa-se essa medida abstracta em percentagem da população, e é a essa métrica que se chama LIG. Esta representação deu azo a inúmeras dificuldades que passo a descrever.
- Inferência baseada em modelos. Numa pandemia as pessoas modificam os seus comportamentos por precaução. Isto impede que o LIG se possa medir directamente. Mesmo que não houvesse modificação de comportamentos, o LIG só poderia ser medido directamente quando a epidemia atingisse o pico e, por conseguinte, demasiado tarde para ser útil. Epidemiologistas e matemáticos recorrem então a modelos que lhes permitem inferi-lo indirectamente a partir de séries temporais de casos confirmados, hospitalizados e mortos. Estas inferências acarretam incertezas difíceis de quantificar.
- Diferenças entre indivíduos. A representação do limiar da imunidade de grupo como percentagem da população só é inequívoca se todos os indivíduos imunizados contribuírem o mesmo para a imunidade populacional. Mas na realidade uns são à partida mais susceptíveis à infecção e por isso a sua imunização pesa mais na soma. Como a epidemia tende a atingir primeiro os indivíduos mais susceptíveis, o LIG atinge-se com uma percentagem menor da população previamente infectada. No início de uma pandemia, não se sabe quão variável entre indivíduos é a susceptibilidade à infecção. Pior, não se sabe como medir directamente a susceptibilidade de um indivíduo e muito menos construir a distribuição de susceptibilidades de uma população. Para circundar estes impedimentos, o nosso grupo de epidemiologistas e matemáticos desenvolveu um método que permite inferir indirectamente as distribuições necessárias ao cálculo do LIG.
- Evolução do vírus. Os vírus sofrem mutações e a selecção natural tende a favorecer as variantes que são mais transmissíveis ou menos neutralizáveis pela imunidade adquirida. Em geral, estas variantes expandem-se em abundância e tornam-se dominantes. Isto faz com que o LIG aumente gradualmente ao longo do tempo.
- Sazonalidade. Os vírus respiratórios transmitem-se melhor em ambientes frios e secos, o que em climas temperados corresponde ao Inverno. Assim, as séries temporais que informam as inferências do LIG devem idealmente incluir pelo menos um Inverno. Então o que fazemos se a pandemia tiver início na Primavera? Ficamos à espera do Inverno seguinte para procedermos a estimação do LIG? Claro que não! Vamos estimando e actualizando à medida que a epidemia se vai desenrolando. Mas não podemos ficar presos às primeiras estimativas. A expectativa é que o LIG aumente no Inverno.
- Renovação da população. Por norma, pandemias causadas por vírus respiratórios terminam em endemias. O vírus continua a circular causando epidemias sazonais. Então o que se passa com a imunidade de grupo? O LIG é inatingível? Não, o LIG é ultrapassado no pico de cada epidemia sazonal. Então se o LIG é ultrapassado porque é que não deixa de haver epidemias daí em diante? Porque a população está em constante renovação, com idosos a terminar percursos de vida e crianças susceptíveis a nascer. Desse modo, a imunidade populacional vai caindo, acabando por voltar abaixo do LIG. Ou seja, volta a haver condições para sustentar epidemias, mas de severidade inferior à das iniciais ondas pandémicas. A severidade será inferior em regime endémico porque as pessoas serão naturalmente expostas ao vírus nos primeiros anos de vida, altura em que a infecção é mais ligeira, continuando a ser repetidamente expostos ao longo da vida e mantendo assim a memória imunológica protectora. Este processo tende a perder eficácia em idades mais avançadas, altura em que passaremos a ser vacinados regularmente como acontece com a gripe.
Finalmente, o ponto que quero transmitir é que a utilização do LIG na pandemia da covid-19, tanto por parte dos decisores em matéria de saúde pública como da comunicação social, foi largamente desenquadrada dos fenómenos populacionais que acabo de descrever. Uma boa compreensão do LIG é útil no início quando estamos ainda a tomar o pulso à pandemia e continua a ser útil em fases subsequentes se estiver sujeito a constante actualização, mas a sua utilidade será cada vez menor à medida que a pandemia vai avançando. Ou seja, a utilidade do LIG tem prazo e, nas zonas mais afectadas pela pandemia e/ou mais vacinadas, esse prazo expirou durante o primeiro semestre deste ano.
É assim que em países como Portugal deixa de fazer sentido continuarmos a fazer contas à imunidade de grupo ao coronavírus que causou a pandemia. A situação em que estamos é idêntica aquilo que é esperado para daqui por um ano, dois, três, quatro, e por aí em diante, e não podemos continuar neste frenesim deixando as outras doenças para segundo plano. A covid-19 já deixou de ser mais importante do que tantas outras doenças, incluindo aquelas que são causadas por outros vírus respiratórios que foram suprimidos pelas medidas anti-coronavírus, mas muito provavelmente voltarão em força este Inverno.
O LIG é uma peça fundamental nas avaliações custo-benefício de eventuais medidas de mitigação ou supressão da pandemia e a sua estimação deve ser o mais precoce e exacta possível. Se enviesarmos as estimativas para cima, acabaremos com estratégias de contenção exageradas, e se enviesarmos para baixo corremos o risco de enveredar por medidas insuficientes. Nesta pandemia, um conjunto de factores fez com que se enviesasse para cima. Quais foram esses factores e como interagiram entre si para produzir uma corrente pró-lockdown tão dominante será um importante tema de investigação transdisciplinar para anos vindouros.