Para onde caminha o futebol europeu?
Cada vez mais, o futebol europeu está transformado numa coutada pertencente a dois tipos de clubes: os novos-ricos e os emblemas históricos dominados por fundos de investimento que pretendem impor um modelo de competição desportiva à semelhança do existente nos EUA. A tudo isto a UEFA assiste, sem verdadeiramente atuar.
A saída de Leonel Messi dos quadros do F.C. Barcelona não pode ser dissociada do acordo a celebrar com o fundo de investimento CVC Capital Partners proposto pela La Liga aos seus clubes associados, no âmbito do qual estes aceitam uma injeção de capital de 2,5 mil milhões de dólares, por contrapartida de uma participação minoritária nos futuros direitos televisivos e de organização das competições. O impacto da pandemia nas receitas dos clubes acelerou os desequilíbrios estruturais no modelo de gestão destes, e conduziu-os até um negócio que, na essência, se traduz numa antecipação custosa de receitas futuras (à semelhança de uma prática já disseminada há anos entre os clubes portugueses).
Bastaram 5 anos de uma presidência absolutamente desastrosa do ponto de vista de política desportiva para o Barcelona - campeão europeu de 2015 e o único clube no mundo a atingir, antes da pandemia, receitas anuais superiores a mil milhões de dólares - mergulhar num abismo que o deixou sem condições para segurar o jogador que foi a grande referência do período mais áureo da sua longa história, e em redor do qual todo o seu modelo de jogo (e receitas de marketing) assentava.
Independentemente das opções erradas (e foram várias) dos seus dirigentes, a presente situação do Barcelona é apenas o último grande exemplo da insustentabilidade do atual modelo de gestão em que assenta toda a indústria do futebol, no qual a crescente disparidade nas receitas dos clubes – alimentada pela diferente dimensão económica das várias ligas e, sobretudo, pelos prémios de participação (ou não) na Champions League – e a inexistência de tetos salariais, criam um incentivo aos clubes para gastarem cada vez mais em prémios de contratação e remunerações a jogadores, potenciando o impacto financeiro da bola que bate na trave ou do penálti que se falha. Pior ainda, conduzem quase sempre as direções e administrações a encetar autênticas “fugas para frente” – gastando ainda mais – no desejo de recuperar a competitividade desportiva e, sobretudo, aceder aos prémios e receitas perdidas por uma não participação na Liga de Campeões.
A consequência está à vista de todos. Cada vez mais, o futebol europeu está transformado numa coutada pertencente a dois tipos de clubes: os novos-ricos - clubes que, não tendo grande tradição desportiva ou projeção histórica, são controlados ou detidos por investidores cujo móbil é a projeção mediática que tal propriedade lhes concede (e muitos deles com uma clara “agenda” política) – e os emblemas históricos dominados por fundos de investimento que pretendem impor um modelo de competição desportiva à semelhança do existente nos Estados Unidos, exclusivo dos mesmos clubes, e onde o mérito desportivo (melhor, a falta dele) não conta. E com isto, cada vez mais, o futebol é um desporto que se afasta da essência da sua existência: os adeptos.
Não tenhamos ilusões. O negócio da Superliga (para já) falhou – muito devido à força que os adeptos ainda têm sobre o jogo - mas a ameaça de uma liga exclusiva é cada vez maior, numa indústria onde os grandes fundos internacionais, já detentores de alguns dos emblemas históricos, se preparam para se tornar também investidores diretos nas próprias entidades que organizam as competições, potenciando conflitos de interesses que nada de bom trazem para a competição desportiva.
A tudo isto a UEFA assiste, sem verdadeiramente atuar. É até capaz de violar a própria integridade da sua principal competição, perdoando uma exclusão ao Manchester City por infringir as regras de contratação de jogadores jovens, ou fechando os olhos à fuga grosseira ao fair-play financeiro pelo PSG. UEFA, que deveria ser o primeiro garante da competitividade desportiva, e de zelar para que todos tivessem uma real possibilidade de poder vencer. Como? Por exemplo, promovendo uma maior equidade na repartição dos direitos televisivos entre as ligas nacionais. Trabalhando com estas e com a Comissão Europeia para que os tetos salariais possam ser uma realidade comum a todos os clubes. Negociando, com os vários governos, uma harmonização da fiscalidade para os clubes e jogadores a atuar na Europa, impedindo a injusta vantagem financeira de clubes pertencentes a países de fiscalidade reduzida (e quão prejudicados têm sido os clubes nacionais por esta concorrência tributária!!). Aproveitando precisamente o momentum gerado, a nível europeu, por toda a oposição ao projeto egoísta da Superliga Europeia, e ao qual os governos do continente não foram indiferentes.
A adopção do modelo de competição norte-americana pelo futebol europeu (ou por qualquer outro desporto) dará concerteza, aos predestinados que nela participem, a estabilidade financeira e de gestão que tornará praticamente impossível uma crise como a que o Barcelona atualmente atravessa. Mas tudo isso será conseguido a expensas de todos os demais clubes que, inexoravelmente, mingarão, pondo em risco não apenas o seu papel de símbolo e pilar congregador de comunidades locais, mas sobretudo a sua fulcral importância na promoção e formação desportiva entre os jovens (especialmente em países como o nosso, onde o ecletismo faz parte do ADN da maioria dos clubes, e o Estado pouco faz pela promoção da prática do desporto). Não se pode querer implementar um modelo como o da NBA para o futebol europeu, ignorando que os clubes que a ela pertencem são meros franchises que mudam de cidade consoante o Estado ou cidade que ofereça mais vantagens financeiras, e passando por cima da importância que o desporto universitário tem naquela realidade, e que não existe na Europa.
Por tudo isto, parece-nos imperativo que os clubes se mantenham controlados por adeptos. E por mais quixotesca que tal ideia pareça na atual realidade do futebol europeu, ela não é de todo inviável. Há até um excelente exemplo de que tal é possível, felizmente: a Bundesliga, que impõe aos seus membros a obrigatoriedade do controle do clube pelos adeptos e regras claras de controle de custos, e pôde até rejeitar à mesma CVC Capital Partners um negócio em tudo semelhante ao agora proposto para Espanha, em nome da importância que este continue a ser um desporto de e para os adeptos. Já agora, uma pergunta: se a lógica do negócio com a CVC é o de potenciar as receitas televisivas, como pretende La Liga atingir tal desiderato numa competição cujos grandes clubes têm perdido protagonismo na Champions ao longo dos últimos anos, e que se vê agora privada de jogadores tão mediáticos como Leo Messi e Sérgio Ramos (e, antes, de Cristiano Ronaldo)?
Uma nota final: nada do que acima se defende dispensa um aspeto essencial. Os clubes existem e vivem para competir e vencer, e não para dar dividendos a acionistas. Mas não é menos verdade que o caminho das vitórias futuras se trilha muito por não hipotecar financeiramente esse futuro, especialmente numa indústria cuja estrutura está longe de garantir a estabilidade de receitas e custos. Para isso, há que saber formar jogadores e mesclar essa dimensão com a arte de comprar e vender os direitos desportivos dos jogadores nos momentos adequados. Não é tarefa fácil. Não é tarefa para todos. É, no entanto, condição essencial para que os nossos clubes de adeptos não sejam atirados, inexoravelmente, para os braços de uns investidores sem alma, e sem coração.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico