Censos 2021. Vila Velha de Ródão com migração positiva? Gente a abandonar Sintra? Uma análise além do óbvio
Perdas de população por movimentos migratórios não é o mesmo que uma população que diminui por envelhecimento. E sendo verdade que temos um país a viver mais no litoral, a razão principal não é, como muitos nos querem fazer crer, o saldo migratório.
Mais 10 anos da nossa história descritos por um novo processo de Censos. Nestes 10 anos, passámos por duas crises e registámos a primeira redução de população em 50 anos. As análises e os seus soundbites apontam para uma catástrofe. Sublinham que o país está tanto inclinado como condenado. Fuga do país, do interior, excesso de gente no litoral. Os Censos mostram o que mudou na última década. A título pessoal, a minha visão sobre demografia mudou para sempre há quase 15 anos. Numa aula de Economia Regional, o professor deixava mais uma vez os alunos de queixo caído, a partir de uma decomposição da evolução populacional. Foi o professor Pedro Ramos, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que nos deixou demasiado cedo.
A ideia, como qualquer boa ideia, é simples e nem é preciso grande tortura dos números. Basta não antecipar conclusões sobre os movimentos migratórios. Mas vamos por partes. Porque perdem ou ganham alguns concelhos mais população do que outros? Porque há migrações? Claro. O chamado saldo migratório. Mas a outra razão, que está à frente dos nossos olhos, é o número diferente de nascimentos e mortes – o chamado saldo natural. Imaginemos uma terra com 1000 habitantes que perdeu 10% da população e tem agora 900 habitantes. Se o número de óbitos for 250 e o de nascimentos de 100 então na verdade, esta localidade capturou, em termos líquidos, mais 50 novos residentes. Ainda assim perdeu 10% da população. Mas culpar a emigração ou a falta de nascimentos são duas coisas diferentes. O problema é que, na generalidade das análises que muitos se apressaram a fazer sobre o seu concelho ou a sua freguesia, o impacto do saldo natural não foi quantificado, apesar de este ser hoje ser o fator mais determinante para explicar a evolução populacional.
Esta hipótese teórica seria pouco relevante se não fosse uma caracterização da situação portuguesa na última década. Portugal tinha 10.562.178 habitantes, perdeu 214.286, mas, na verdade, entre nascimentos e óbitos, a perda de população em Portugal teria sido de 230.273. Isto significa que entre pessoas que saíram do país e que entraram ou regressaram, o saldo migratório é positivo: há 15.987 novos habitantes. Dito de outra forma: se Portugal tivesse tido o mesmo número de nascimentos e óbitos, o número de habitantes tinha tido um acréscimo de 15.987, ou seja, 0.2%. Por agora, o problema é que o saldo migratório não acompanha o ritmo negativo de uma população cada vez mais envelhecida, algo que só tende a agravar-se com o passar do tempo. Na verdade, este cenário diz-nos que o maior motivo para a perda de população em Portugal dificilmente será invertido e que está associado ao envelhecimento, que gera mais óbitos e menos nascimentos.
Mas e em termos regionais ou locais? É a “fuga para o litoral” uma tendência assim tão clara? Todos sabemos que o interior perdeu muitos habitantes. Mais uma vez. Mas olhemos para o caso de Vila Velha de Ródão. Este concelho perdeu 234 habitantes, 6.6% da sua população. No entanto, nos últimos 10 anos, os óbitos superaram os nascimentos em 720. Ou seja, na verdade, Vila Velha de Ródão perdeu menos população graças a um saldo migratório positivo de 486 pessoas. Há mais pessoas a ir para Vila Velha de Ródão do que a sair. As contas são exatamente estas… este concelho do interior atraiu mais gente do que perdeu. E isto acontece em Vila de Rei, Fundão, Idanha-a-Nova, Pampilhosa da Serra, Sabugal, Vimioso, só para dar alguns exemplos de concelhos que costumam ser associados ao abandono. Em Portugal, há 117 concelhos (mais de um terço) que perde população por causa do saldo natural mas na verdade tem uma migração positiva. Destes, uma parte significativa é no Interior.
Por outro lado, há casos que são o oposto deste. Um dos concelhos do país que mais cresceu em termos populacionais foi Sintra. Há em 2021 mais 8119 pessoas em Sintra do que há 10 anos. Porém, a diferença entre nascimentos e óbitos de residentes de Sintra foi de 11345 (39340 nascimentos e 27995 óbitos). Portanto, na verdade, Sintra perdeu em termos líquidos 3226 pessoas que decidiram deixar de morar neste concelho. Mas a fuga de pessoas de Sintra não merece qualquer atenção. E mais uma vez este caso não é exclusivo. Concelhos como Loures, Oeiras, Odivelas, Vila Franca de Xira, Valongo ou Lousada, parte do litoral urbano, onde tudo parece ser melhor porque a população cresceu, tiveram saldos migratórios negativos com mais gente a abandonar o concelho do que a decidir lá morar. Portanto, há concelhos do litoral que crescem mas que, na verdade, registam maior fenómeno de abandono que Vila Velha de Ródão. Concelhos do interior a captar gente e concelhos do litoral a perder… “E esta, hein?”
Há uma regra básica para definir as políticas públicas: se o diagnóstico não estiver bem feito, não serão eficazes. Perdas de população por movimentos migratórios não é o mesmo que uma população que diminui por envelhecimento. E sendo verdade que temos um país a viver mais no litoral, a razão principal não é, como muitos nos querem fazer crer, o saldo migratório. O Distrito de Bragança perde 12.426 habitantes devido ao saldo natural e perde 993 por causa do fenómeno migratório. O Distrito da Guarda perde 17004 habitantes porque morreram mais pessoas do que nasceram, mas só perde 916 por causa do fenómeno migratório. A perda por saldo natural é de longe muito maior no interior português do que a perda por migrações. Portanto, se se quiser afirmar que o decréscimo populacional em Portugal é um problema, é importante que se tenha a noção do tipo de problema que estamos de facto a enfrentar.
Numa altura de eleições autárquicas, o uso do argumento paroquiano de ganhar ou perder população está na boca de todos. Mas precisamos de entender que, em muitos casos, a perda de população já era mais do que esperada e que a sua reversão terá de passar por políticas públicas corajosas, porque uma população envelhecida não se pode rejuvenescer. A solução está na migração e aumento dos níveis de fertilidade. Ainda nos falta informação, mas, quando tivermos mais dados, estes mostrarão provavelmente o problema etário associado às nossas migrações. Ou seja, apesar de termos um saldo migratório positivo, Portugal - e o interior em particular - tende a captar reformados e pessoas mais velhas, enquanto os mais jovens são aqueles que saem. Desta forma, aprofunda-se o envelhecimento mesmo num quadro em que fosse possível que os nascimentos igualassem o número de óbitos. Por isso, precisamos de garantir que os jovens em idade adulta e fértil encontram uma solução de futuro no país e que somos capazes de atrair ou fazer regressar aqueles que estão no exterior.
Precisamos de políticas públicas e não só à escala concelhia ou da freguesia. Vamos precisar que o saldo migratório em Portugal represente pelo menos 5% da população nos próximos Censos. Uma enormidade, bem sei. Mas, estamos a envelhecer a olhos vistos e a incapacidade de rejuvenescimento do país já é uma realidade. Os instrumentos de exceção existem para enfrentar problemas extremos. Se temos uma bazuca, que a usemos. Não façamos da dívida pública e do equilíbrio dos bancos o nosso único problema. Precisamos muito de colocar a demografia no centro do nosso debate. Precisamos de um país onde as pessoas queiram viver e ter um futuro. E isso não se discute só de 10 em 10 anos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico