Facadas e alfinetadas no Estado de direito
O respeito pelos valores comuns não é uma opção, nem uma mera condição para a adesão à União, mas uma obrigação para quem nela permanece. Aqueles valores são inegociáveis, irrevogáveis e irrenunciáveis. Eles terão de ser o que nos une, a base e fundamento das nossas políticas e ações.
Na história do velho continente e dos seus Estados, a União Europeia representa um avanço sem precedentes na consagração de valores comuns como a dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de direito e os direitos humanos. Os valores consagrados no artigo 2.º do Tratado de Lisboa são um exemplo dentro e fora do espaço europeu.
Neste âmbito, o projecto europeu é ímpar e, como tal, deve ser reconhecido e renovado. Nele, o respeito pelos valores comuns não é uma opção, nem uma mera condição para a adesão à União, mas uma obrigação para quem nela permanece. Aqueles valores são inegociáveis, irrevogáveis e irrenunciáveis. Eles terão de ser o que nos une, a base e fundamento das nossas políticas e acções.
O direito europeu tem vindo a prever sucessivos instrumentos de protecção destes valores. Só que, face à dinâmica geopolítica própria da União e à irresponsabilidade e falta de coragem dos líderes nacionais, aqueles têm vindo a revelar-se ineficazes. Pense no mecanismo de sancionamento consagrado no artigo 7.º do Tratado, cuja ativacção depende de uma unanimidade que nunca é alcançada, porque, quando o procedimento se inicia, por exemplo, contra a Hungria, outro Estado, como a Polónia, sempre se opõe.
Para corrigir esta inoperância, em Dezembro de 2020, no âmbito do pacote de recuperação da crise pandémica, o Parlamento Europeu e o Conselho chegaram finalmente a acordo relativamente à adopção de um regime geral de condicionalidade para a protecção do orçamento em caso de violação do Estado de direito. Entre as medidas previstas no Regulamento, e que poderão ser activadas através de uma decisão por maioria qualificada no Conselho, estão a suspensão da aprovação de fundos, a redução de pré-financiamentos ou a suspensão de dotações de autorizações e pagamentos. Recordo que António Costa se tinha manifestado contra este Regulamento, em Budapeste, ao lado de Viktor Orbán. Lembro que o Governo português, desculpando-se com um inexistente dever de neutralidade por estar a presidir ao Conselho da UE, se recusou a assinar uma carta a condenar uma lei húngara anti-LGBTIQ. Se fosse um primeiro-ministro da direita, o que se teria dito e escrito em Portugal?
Volvidos seis meses desde a aprovação do novo regime de condicionalidade, a Comissão Europeia, convenientemente refém da vontade política dos chefes de Estado e de Governo, quer agora aprovar linhas de orientação, directrizes de aplicação do Regulamento. O Regulamento é claríssimo, dispensando estas directrizes, cuja criação não está nele prevista. Elas são, também, pouco democráticas, porque dispensam a intervenção decisiva e decisória do Parlamento. É apenas uma manobra dilatória que nunca poderá alterar o referido Regulamento. No fundo, a Comissão Europeia acaba por também ela dar uma alfinetada na protecção do Estado de direito.
O Estado de Direito é uma conditio sine qua non do projeto europeu. A sua protecção não tem preço e, portanto, não há que olhar a meios, nem a valores, para o fazer valer. O regime geral de condicionalidade não constitui uma monetarização do Estado de Direito. Ele expressa, outrossim, a vocação axiológica do orçamento europeu, que se fundamenta e investe no rule of law, no pluralismo, na tolerância e na solidariedade. Cabe à Comissão e aos chefes de Estado e de Governo assumir esta vocação, antes que ela se perca, antes que seja tarde demais.
Precisamos de instituições livres, de uma sociedade civil forte e de uma imprensa independente para que os valores europeus sejam protegidos em cada Estado membro. Há uma tendência para se falar unicamente na Polónia e na Hungria e se branquear as violações do Estado de direito onde os governos são socialistas. Na Eslováquia e em Malta foram assassinados jornalistas que investigavam processos de corrupção ligados ao respectivos governos e na Roménia tentaram aprovar uma lei que amnistiava dirigentes socialistas condenados por corrupção. Estes são exemplos de facadas no Estado de direito. Em Portugal, a designação do chamado Procurador Europeu, as nomeações para altos cargos, as afirmações de que os partidos políticos devem dar instruções aos juízes sobre a eleição do respectivo presidente, o envio de dados de manifestantes à embaixada russa, são, no mínimo, alfinetadas no Estado de Direito.