“Sinto mais gozo em libertar um atum do que em metê-lo no barco”
Fomos à pesca do atum-rabilho no Algarve com o sistema de captura e libertação e, de caminho, disseram-nos que o capitão Manuel Viana é, vejam só!, campeão do mundo da pesca do espadim-azul. Portugal é um país esquisito. Faz do mar um desígnio nacional e tem campeões em diferentes áreas de pesca, mas, misteriosamente, ninguém os conhece.
Qual miúdo na véspera de ir com o avô para o mar, o chef Carlos Afonso sonha mais com peixes do que com tachos, a não ser que, claro está, nestes entrem os pargos, gorazes, imperadores, dourados ou atuns que apanha. No restaurante Frade, em Lisboa, desenvolveu, com o primo Sérgio, uma cozinha de memórias alentejanas que rapidamente deu que falar. Em consequência, o mais natural seria escutá-lo a dissertar sobre os pratos que vai apresentando na ementa e que aprendeu com a mãe. Mas qual quê? O que ele quer é falar das experiências que já teve nos mares da Costa de Caparica, do Algarve, da Costa Vicentina, dos Açores e de Cabo Verde. Espécies capturadas, tamanhos e pesos, artes de pesca, barcos e peripécias no mar, tem tudo guardado num ficheiro mental. Nada escapa. Onde passa as folgas? Num qualquer barco. Para onde vai parte das férias? Para um novo destino de pesca.
Conhecendo o espírito do projecto Todo o Peixe é Nobre, do PÚBLICO, Carlos Afonso desafiou-nos para um dia de pesca ao atum-rabilho, ao largo de Olhão, realçando que a pescaria seria feita segundo o sistema de catch and release. Ou seja, todos os atuns apanhados seriam devolvidos ao mar. Vivos e em bom estado. Embora o stock da espécie tenha recuperado na última década, a realidade é que os responsáveis de muitas empresas que se dedicam ao big game fishing são adeptos da libertação dos peixes. Alguns capitães fazem tanta gala no sistema catch and release que içam pequenas bandeiras nas embarcações com o peixe virado ao contrário, significando isso que a embarcação não matou qualquer atum.
De resto, na maioria dos concursos mundiais, um peixe libertado é majorado em termos de pontuação. Se, por exemplo, uma embarcação apanhar e libertar um atum com 200 quilos, para efeitos de pontuação final esse peixe é contabilizado com 400 quilos. Nem tudo é rapinagem no mundo da pesca.
A bordo com um campeão mundial
À laia de cartada final para nos convencer a embarcar, o chef garantiu que só iríamos pescar atum de revés (peixes que estão de saída do Mediterrâneo depois da desova) e lá foi desfiando as competências técnicas e as preocupações ambientais do capitão Manuel Viana. Ligeiro detalhe: Carlos Afonso, que só pensa mesmo em pescar e o resto são detalhes, esqueceu-se de dizer que Manuel Viana é – imaginem! – campeão do mundo da pesca do espadim-azul – o troféu mais cobiçado no big game fishing. Pois é.
No passado dia 4 de Julho, e quando estavam na água 122 barcos, nos oceanos Pacífico e Atlântico, Manuel Viana, em Cabo Verde, capturou o maior espadim-azul da competição – um peixe com 475,5 quilos. Nos 37 anos da competição mais importante do mundo, o exemplar apanhado pelo capitão português é o terceiro maior alguma vez capturado. À volta de uma posta de atum, num restaurante escondido nas ruelas de Olhão, perguntamos a Manuel Viana, da empresa Blue Captures, por que razão esse título, que se traduziu num prémio de 422 mil euros, não é do conhecimento da sociedade? “Olhe, não sei, nós metemos as imagens todas no Facebook. De resto...”
O capitão é neto e filho de algarvios e começou na vida do mar aos seis anos, com o avô. Licenciou-se no Instituto Superior Técnico em engenharia de máquinas, mas, em vez de se dedicar à mecânica, andou a importar marcas de desporto (foi pelas suas mãos que as Converse All Star chegaram a Portugal). Em 1997 cria, com o pai, uma pequena empresa de big game fishing. Hoje, com barcos bem equipados, reparte o tempo entre o Algarve e Cabo Verde. E, por já ter apanhado vários granders (espadins com mais de 460 quilos), é uma referência na comunidade de big game a nível mundial.
Linhas na água e, zás, dois atuns ferrados
Um leigo fica impressionado com o facto de, a duas milhas da costa e com as praias da ria Formosa à vista, ser possível pescar atuns-rabilhos, mas, em rigor, na viagem que fazem em direcção ao Mediterrâneo, e depois na saída para o Atlântico, os peixes aproximam-se da costa. De maneira que, menos de uma hora depois de termos zarpado de Olhão, dois dos quatro carretos que estão com linhas na água “começaram a cantar”. Em linguagem de marinheiro de big game, dois peixes ferrados de uma só vez chama-se um double strike.
Nesta altura, a excitação a bordo é controlada pelo capitão, que manda Carlos Afonso para a cadeira com um carreto e, em simultâneo, pede para se colocar um colete de stand up em Rui Simão, um amigo que vai na viagem. Fazer o combate com um atum-rabilho na cadeira já é uma trabalheira dos diabos, fazê-lo em pé, mesmo que segurado pelas costas por um camarada, é outra loiça. O risco de ir parar ao mar é elevado.
Se dois peixes em simultâneo é uma festa para quem assiste, a manobra do barco nestas circunstâncias é determinante para o sucesso das capturas. Como cada atum tem o seu comportamento (ora vão fundo, ora vêm à superfície, ora correm para estibordo, ora para bombordo), o capitão tem de manter o barco numa posição que impeça que as linhas se cruzem. E como tudo isto é rápido e ocorre em simultâneo, é fácil imaginar a algazarra a bordo.
Apesar das dificuldades, o atum de Rui Simão (uns 230 quilos) foi o primeiro a chegar à ré, para, como mandam as regras, ser de imediato libertado. Já o atum de Carlos Afonso não estava interessado em colaborar, pelo que impôs um combate que durou mais de uma hora. Ao chef, de nada lhe serviram as horas que passa no ginásio. Um atum de 350 quilos é, como dizem os pescadores, um torpedo que muda bruscamente de direcção à velocidade da luz. Nestas alturas, a única solução é dar linha até que o peixe se canse. E, depois, voltar a dar ao carreto. Mas quando o animal já está à vista, afunda. E começa tudo de novo. Quanto tempo pode durar a brincadeira? Depende. Tanto pode resolver-se o assunto em meia hora como em várias horas. “Uma vez, apanhámos um atum aqui e só o trouxemos para a ré quando Huelva estava à vista. Foram cinco horas e meia de combate.” Seja como for, quando a T-shirt de Carlos Afonso ficou ensopada em suor, o peixe cedeu. Feitas as avaliações de tamanho e peso, lá se libertou o atum.
O lance seguinte coube ao chef Alexandre Silva (dos restaurantes Loco e Fogo), a quem Carlos Afonso gosta de atribuir o epíteto de mentor. Saiu-lhe um atum com 190 quilos, mas, ainda assim, exigiu trabalho de braços, costas e pernas e, claro, muita paciência. Peixe apanhado, peixe libertado.
Três atuns num só dia já era pescaria séria, pelo que, a nosso ver, poderíamos regressar a terra. Mas o capitão e o seu assistente Hugo Silva – homem sempre bem-disposto – entenderam que para se escrever um artigo em condições sobre esta arte seria necessário meter o jornalista na cadeira. A tese pareceu-nos certa, mas a ideia de passar uma hora ou mais a dar ao carreto não nos agradava. Enfim, talvez o mar desse um atum júnior. A coisa resolver-se-ia rapidamente e ainda teríamos tempo para ir à Culatra comer amêijoas.
Tudo ao contrário. Pela forma como, a dada altura, a cana vergou e o carreto cantou, Manuel Viana vaticinou que seria o recorde do dia. Não vamos negar a excitação, mas, recordando o tempo que Carlos Afonso esteve a dar luta a um atum de 350 quilos, a nossa ideia era que só chegaríamos a terra já noite fechada. Mas, por razões que não foram seguramente a habilidade de quem estava na cadeira, o combate durou só 50 minutos. Menos mal. Se, de facto, há muita adrenalina a correr nas veias (por duas vezes o meu corpo alçou da cadeira em direcção ao mar), esta é uma pesca que exige uma licenciatura em paciência. Durante todo o tempo o peixe sobe, desce e tenta partir a linha em qualquer superfície (uma armação por perto ou a própria hélice do barco), pelo que a luta nesta pesca é um exercício a quatro: o pescador, o peixe, o capitão a manobrar o barco e um tripulante experiente para dar assistência – o bom do Hugo. Sem isso, nada feito.
É claro que para o pescador-jornalista ficou a alegria de apanhar e libertar um atum com cerca de 400 quilos. Mas isso não ocorreu sem um conjunto de mazelas (bolhas nas mãos, costas em péssimo estado e braços que só deixaram de tremer no dia seguinte). Ligeiro problema: é possível que esta aventura tenha sido o rastilho de um vício.
No regresso a Olhão, com umas minis a fazerem o papel de espumante, provocou-se Manuel Viana. Nunca tem a tentação de meter um atum a bordo para uma patuscada entre amigos? “Olhe, eu não pratico o catch and release só para contribuir para a recuperação do stock da espécie, coisa que é boa para a minha actividade. É que sinto mais gozo em libertar um atum do que metê-lo a bordo. Muito mais. Gosto de vê-los, depois de libertados, a dar à cauda e a regressarem à vida deles.”