Artes
Aheneah faz ponto-cruz com pregos, martelos, quilómetros de lã — e a ajuda das avós
Antes de chegar à rua, Ana Martins traz de casa sacos e sacos de nós de lã enlaçados pelas avós. Cada um deles, separados por cores, carrega uma meada de 396, 397 ou 398 nós, contam os papeizinhos escritos por duas mãos. “Eu já lhes disse que podem apontar 400, mas insistem no rigor”, ri-se a artista.
É este o ponto de partida do “ponto-cruz descontextualizado” de Aheneah, em tudo o resto muito diferente do das avós. Ana pendura nas paredes “bordados” gigantes feitos não com agulhas, mas com pregos, martelos e quilómetros de linha. “Há muitas técnicas tradicionais que estão ligadas a um mero uso doméstico e que têm imensas possibilidades por explorar. Há ali tanta sabedoria que é incrível perceber o que as pessoas com as mãos conseguem fazer, criar e como isso pode ter outro contexto”, comenta.
Encontramo-la pela segunda vez no Wool, o festival de arte urbana na Covilhã onde se debruçou sobre a primeira instalação de arte urbana em lã em grande escala. O retrato da bisavó a ensiná-la a tricotar um cachecol cor-de-rosa ainda lá está, na Casa dos Magistrados. Foi a primeira vez que se atirou à lã, num misto de curiosidade e de desejo de “fazer parte do ‘clube’ que elas criavam quando tinha dez anos”.
Agora, é ela quem reúne as matriarcas, “matrizes”, como também lhes chama, à volta de uma mesa “para produzir peças totalmente diferentes e que chegam a públicos também diferentes”. “O que faz mais confusão às minhas avós é precisamente como é que eu faço disto um trabalho. Elas faziam ponto-cruz e outras técnicas tradicionais porque estavam em casa e eram donas de um lar. Consigo-lhes mostrar que há uma nova geração, que as coisas estão a mudar, que eu estou a fazer parte dessa mudança e que elas estão comigo. Percebi que havia uma ponte entre duas gerações que conseguia fazer.”
Ana começou a “rasgar todos os conceitos” e contextos associados ao ponto-cruz depois de perceber que a técnica de bordado em que os pontos têm formas de “x” “funciona exatamente da mesma maneira que os pixéis”. “Consigo misturar o mundo digital e o analógico num só e gosto muito da dualidade do processo”, explica. É sentada ao computador, “totalmente embebida pelo mundo digital, por imagens e pixéis”, que começa a criar as peças de cores gritantes e com efeito de glitch que reivindica construir com a ajuda de muitas mãos.
Em muitas delas figuram mulheres abstractas, uma decisão que não está necessariamente entrelaçada com a técnica ou materiais escolhidos, mesmo que reconheça “uma desvalorização tanto do que são as nossas raízes e a nossa história, como da figura da mulher”. “Acho que essas barreiras e esses conceitos têm de ser quebrados e acho que é uma forma de dar valor que as técnicas nunca tiveram e a própria mulher nunca teve”, explica.
Na Covilhã, cidade em que crianças-mulheres anónimas ajudaram a tecer a indústria dos lanifícios, Aheneah finalizava a mais recente instalação com a ajuda hábil de um grupo de voluntários. No início de Julho, também eles se reuniam à volta de uma mesa, os olhos bem abertos para não perderem o fio à meada, à procura de ligações perdidas entre os 12 mil pregos que marcam o caminho dos 13 quilómetros de linhas. É já uma longa distância desde as primeiras vezes em que conseguiu trazer “estes materiais para a rua”, ainda durante a licenciatura em Design Gráfico, na ESAD, nas Caldas da Rainha. “As primeiras três peças que fiz foram feitas directamente na parede, prego a prego. Usava trapilho, fazia o ziguezague para trás e para a frente”, resume. O demorado processo foi optimizado com a ajuda de mãos experientes, que fazem os nós para a neta poder continuar o ponto.