Foi recentemente publicado um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (UE), segundo o qual os empregadores podem proibir o uso do véu islâmico para fazer cumprir a sua política de neutralidade. Nos dois processos apensos, os motivos avançados pelos empregadores incluíam evitar conflitos ou tensões sociais dentro da empresa e assegurar os direitos e expectativas legítimas dos clientes. Importa aqui salientar que o Tribunal de Justiça apenas interpreta as normas de direito da UE, delimitando aquilo que, à luz dessas normas, pode constituir objectivo legítimo de restrição das liberdades individuais. Cabe depois aos tribunais nacionais averiguar se os motivos apresentados são suficientes para justificar a restrição em causa da liberdade de religião. Neste caso, será necessário apurar se decorre do facto de uma educadora usar um véu islâmico, um risco suficientemente concreto de infracção do direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos seus filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas. Ou de que forma o uso do lenço fere a liberdade de empresa.
Não se trata aqui da laicidade do Estado ou do espaço público, nem de restrições de liberdades baseadas em preocupações de segurança pública, mas sim do confronto entre a liberdade religiosa, por um lado, e a liberdade de empresa e uma dimensão do direito à educação, por outro.
Mas não só: ainda que sejam medidas aparentemente neutras, por visarem qualquer símbolo religioso, afectam quase exclusivamente as mulheres muçulmanas. O desfavor é-o não apenas em razão do sexo ou da religião, mas sim na intersecção destas duas dimensões. A interseccionalidade (a ideia de que as nossas experiências são marcadas por camadas de vantagens e desvantagens, ou privilégio e opressão, com base nas hierarquias dos sistemas sociais e estruturas em vigor) é ainda o ângulo morto do princípio da não discriminação.
A religião afecta-nos a todos, quer sejamos crentes ou não; faz parte do tecido da nossa vida social, moral, ética e até política. O nosso sentido de moral ou as nossas convenções sociais, derivam em grande parte da religião. Os dez mandamentos dizem-nos o que devemos ou não fazer, há códigos de vestuário que proclamam a modéstia nas mulheres e a virgindade ou castidade feminina mantém elevada importância.
Ainda não nos conseguimos livrar do binarismo da “boa rapariga/vadia”, presente, por exemplo, na tradição das duas Marias na Bíblia – a mãe de Deus e a prostituta. Além disso, Deus é maioritariamente representado como homem, numa dialéctica quase perfeita com o patriarcado.
Neste contexto, e sob o véu (trocadilho intencional) da neutralidade, aceitam-se fortes limitações à liberdade de identidade e expressão religiosa de mulheres muçulmanas. A neutralidade é elevada a valor jurídico, em detrimento da inclusão e diversidade.
E assim, da servidão do feudalismo às supermulheres do capitalismo, cobertas de responsabilidades, códigos de comportamento e expectativas, a nossa libertação é um mito. E o nosso corpo torna-se uma história que os homens contam aos homens.