Na Hungria, “o Governo age como se não houvesse problema em odiar as pessoas LGBTI”
Desde 2020 que Viktor Órban tem lançado medidas anti-LGBTI na Hungria. A última foi um pacote legislativo que proíbe a divulgação de propaganda LGBTI a menores de 18 anos, que já levou à abertura de um processo de infracção contra o país por parte da Comissão Europeia. Para compreender o clima social que lá se vive, o P3 recolheu testemunhos de húngaros: “O nosso país não nos apoia.”
“Indigno”, “uma vergonha”, “propagador do ódio”. Assim tem sido descrito o novo pacote legislativo húngaro, em vigor desde 8 de Julho, que proíbe a divulgação de propaganda LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e outras identidades) entre menores. “Ela disse-me que queria mudar-se para o outro lado do mundo, estar o mais longe possível da Hungria”, começa por contar Lívia Barts, enquanto olha de soslaio para Beatrix Rencsisovszki. Isto foi em 2016, antes de o Fidesz, partido ultranacionalista do primeiro-ministro, Viktor Orbán, ter conseguido a aprovação das leis que mais directamente prejudicam a comunidade LGBTI. Desde aí, a situação tem vindo a agravar-se, especialmente durante os últimos dois anos, e o casal não vê forma de voltar a casa.
São ambas húngaras e acabaram por escolher o Porto para viver. Portugal, onde acabaram por se casar, tem “mar, universidades, teatros e boas leis LGBTI”, descreve Lívia. Ao P3 Beatrix, consultora financeira de 41 anos, revela que ambas se sentiam revoltadas com as medidas do Governo de Orbán. “Qualquer pessoa que pense um bocadinho se sente assim, mas o Governo é muito populista, por isso é fácil não pensar e apenas aceitar a propaganda que nos atiram para mastigar.” A maioria dos amigos fez o mesmo percurso, tal como “quase todas as pessoas com possibilidades económicas” para tal.
Lívia e Beatrix viviam em Budapeste, uma cidade que, outrora, admitem ter sido “um local maravilhoso para viver”. O clima social foi mudando ao longo dos últimos 11 anos, quando o Fidesz chegou ao Governo. “É algo que se consegue mesmo sentir”, descreve Lívia, professora universitária e designer gráfica de 35 anos. “O ódio entranhou-se lentamente nas pessoas, é visível até na forma como se relacionam na rua”, acrescenta.
Em público e no trabalho foram sentindo cada vez mais a necessidade de resguardar a sua orientação sexual, mesmo que de forma não intencional. “Raramente pensei conscientemente que o estava a esconder, mas claro que houve situações em que o fiz. Por exemplo, num autocarro nocturno, em que vês um grupo de skinheads e te afastas da pessoa com quem estás para que eles não se aproximem”, conta. Hoje, o panorama está ainda mais arriscado para as pessoas LGBTI. “Houve uma altura em que me sentia bem em andar de mão dada na rua, hoje não o faria lá certamente.”
Beatrix dançava em competições para pares do mesmo sexo. Tendo competido por toda a Europa e ganho vários prémios, revela que costumava sentir-se “muito orgulhosa por exibir a bandeira húngara”. Desde a mudança política, “até a dança mudou” e a bailarina conta ter “começado a sentir vergonha” de representar o país cujas leis não a representam. “O que torna a situação muito assustadora é que as leis estão constantemente a mudar em direcção à época negra da Europa Oriental, que é ainda a época dos meus pais e avós. Nós não estamos a aprender com o passado, estamos a voltar ao mesmo ciclo”, avisa.
No Porto há quatro anos, sentem tantas saudades de Budapeste “que chega a doer”, mas não têm planos para voltar. “Tu ficas e lutas, porque és o tipo de pessoa que vai a protestos, recolhe assinaturas para tentar mudar alguma coisa. Passas a vida nisso, ou então decides partir”, afirma Lívia. Mas mesmo para quem parte a revolta permanece, porque “é impossível ignorar o que está a acontecer”.
Os jovens como vento de mudança
Fanni Gorg tem 22 anos, está de passagem pelo Porto através do programa Erasmus + e, apesar de sentir falta de casa, é com tristeza que regressa ao país onde nasceu, mas onde não pretende morar. “Venho de Szeged, uma das maiores cidades da Hungria, mas é ainda bastante pequena, e estudo em Budapeste. Por isso, tenho uma visão geral do país – da cidade grande e das cidades pequenas”, conta ao P3. A estudar Cultura, Língua e Literatura Portuguesa, revela ter sido em Portugal, entre o grupo de estudantes internacionais com que fez amizade, que ganhou coragem para revelar pela primeira vez a sua bissexualidade.
Fanni ainda não contou à família, que considera muito tradicional, nem aos amigos da Hungria. “Eu sei que eles me diriam para não brincar com esse assunto, que tenho um namorado, por isso não devo pensar em raparigas”, declara a universitária.
O problema acentua-se na sua cidade natal, Szeged, já que “a Hungria é um país muito centralizado, onde Budapeste é o centro da economia, da educação, de tudo”. Ao contrário da capital, onde a mentalidade é mais liberal, os assuntos LGBTI são “um grande tabu” nas zonas mais rurais do país. “É um grande problema, porque o Governo faz-te sentir anormal. É especialmente difícil para quem vive no interior, mas mesmo em Budapeste não podemos usar bandeiras com arco-íris ou algo que nos identifique porque somos assediados.”
Não consegue antever quando é que a situação se tornará diferente; acredita que entre os jovens há progresso e vontade de mudança, mas tem noção de que a nova lei que proíbe a representação das pessoas LGBTI entre os menores de 18 anos apenas tornará “tudo ainda pior”. “O nosso país não nos apoia”, acrescenta Fanni.
Quem também acredita no poder dos jovens em mudar o paradigma que se vive na Hungria é Tamas Bucsánszki, estudante na área da Educação, em Budapeste. Agora com 24 anos, descobriu o que é ser gay através da televisão, num “reality show horroroso em que os famosos eram levados para a selva e em que um deles era gay”, conta ao P3 a partir de Budapeste, onde vive. Era pré-adolescente, perguntou à mãe o que significava essa palavra, explicando que durante algum tempo teve “medo de ser gay, porque não sabia o que isso significava”.
Após a morte da mãe, viveu com os avós a maior parte da adolescência, numa família cristã e de direita conservadora, em que as questões LGBTI “não eram assunto”. Hoje define-se como queer e pansexual, mas apenas os familiares mais novos o sabem. “Contei aos meus primos, todos os que têm mais de 14 anos sabem, mas os outros não”, revela. Os avós são já “demasiado velhos”, apoiantes do Fidesz e “não iam perceber que não fizeram nada de errado na minha educação”, explica Tamas.
Apesar de nunca ter sofrido directamente discriminação, tem noção de que é cauteloso quanto à sua orientação sexual, uma vez que, “quando o Governo lança leis como esta e age como se não houvesse problema em odiar pessoas LGBTI”, há grupos da sociedade que se mostram ainda mais extremistas e violentos. Nestas últimas semanas, depois de a lei ter sido anunciada, Tamas sente já a sociedade a mudar, com mais episódios de violência a acontecer para com o seu núcleo de amigos. “Sei que esta minha sensação de segurança é algo muito frágil, pode partir-se a qualquer momento.”
Um problema de desinformação geracional
No último ano, o Governo de Orbán alterou a Constituição húngara, definindo o conceito de género como “sexo biológico baseado no nascimento e no genoma” e retirando às pessoas transexuais a possibilidade de alterar o seu género de nascença no registo civil. O Parlamento, onde o Fidesz detém a maioria por dois terços, aprovou ainda uma lei que impede a adopção de crianças por casais do mesmo sexo. Para além disso, foi acrescentada à Constituição uma definição de família: “A mãe é uma mulher e o pai é um homem.”
Para Sandra Herter, imigrante inglesa a viver na Hungria há 22 anos e mãe de um adolescente transgénero, estas foram notícias “terríveis”. Com 14 anos, o jovem estuda em casa e relaciona-se com os seus pares como qualquer outro adolescente, mas a questão do género está sempre presente no seu dia-a-dia. “É horrível, porque, quando ele pode ser um rapaz, tem imensos amigos e ninguém sequer se apercebe [que ele é transgénero]. Por agora esta lei não importa muito, porque ele é muito jovem, mas e quando ele precisar de arranjar um emprego?”, questiona-se a professora de dança, em entrevista ao P3 a partir da Hungria.
Sandra explica que desde muito pequeno que o filho “agia, falava e queria vestir-se como um menino”. Aos 11 anos contou aos pais que era transgénero e, em 2020, começou a apresentar-se definitivamente como rapaz. Antes de estudar em casa, experimentou várias escolas, mas sempre teve dificuldades em integrar-se, já que os professores não o aceitavam. “Diziam que ele não podia ir para a escola assim vestido, tinha de usar roupas de menina e era tratado com uma rapariga”, algo que chegou até a acontecer em consultórios médicos, conta a mãe.
Apesar disso, o estudante não tem problemas em fazer amigos, já que, de acordo com Sandra, são os mais velhos que não o compreendem. “O problema são os adultos. Ele conta-me que entre os jovens toda a gente é incrivelmente receptiva, mas mantêm estas coisas entre eles, como um segredo, porque a geração mais velha é muito difícil.”
De acordo com o portal de notícias húngaro Nézőpont, nas últimas eleições, em 2018, o Fidesz teve mais votos dos grupos etários entre os 30 e os 39 anos (56%) e entre os 40 e os 49 anos (54%), sendo a faixa etária mais jovem a que menos votou no partido (38%).
Quando soube que o filho era transgénero, Sandra também não percebeu muito bem o que isso queria dizer, mas admite que o facto de falar inglês lhe abriu as portas do conhecimento que não estão acessíveis à maior parte dos adultos na Hungria. “Para quem é húngaro e não fala outra língua, não há qualquer tipo de informação. Há apenas gente a dizer que é estranho e a causar vergonha a estas pessoas”, explica, acrescentando que essa realidade pode ser muito perigosa. “Antes de eu descobrir, o meu filho fechava-se. Estes jovens precisam de imenso apoio”, afirma.
A importância das escolas no combate à intolerância
A nova lei, aprovada a 15 de Junho e já em vigor, proíbe a divulgação de qualquer conteúdo a menores de 18 anos que “mostre ou promova a sexualidade, a mudança de sexo ou a homossexualidade”. Incluída num pacote legislativo que pretende agravar as penas por pedofilia, a medida equipara os dois assuntos e foi já alvo de vastas críticas: desde uma carta assinada por vários Estados-membros da União Europeia – a qual Portugal apenas assinou mais tarde – a manifestações de apoio durante o Campeonato Europeu de Futebol.
A Comissão Europeia já respondeu a esta medida, ameaçando o Governo de Orbán com possíveis sanções, uma vez que considera que o pacote legislativo “viola a proibição de discriminação com base no sexo e na orientação sexual consagrada no artigo 21.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia”. Esta quinta-feira, 15 de Julho, a instituição presidida por Ursula von der Leyen abriu um processo de infracção contra o país, que poderá resultar na instauração de uma acção junto do Tribunal de Justiça da UE. Em comunicado, a Comissão Europeia refere que “decidiu enviar uma carta de notificação à Hungria por considerar que a lei viola uma série de regras da UE” e disposições do direito comunitário.
Para Joel Lopes, professor de Português há dois anos a viver em Budapeste, a medida é “mais do que péssima” e terá consequências na atitude da população. Apesar de considerar que os jovens húngaros são, em geral, “muito abertos”, verifica também que as diferenças são profundas entre as zonas rurais e a capital, mesmo em termos de ensino. Ao P3 conta que em Budapeste lecciona numa escola privada onde tem liberdade para “debater este tipo de assuntos com os alunos e colegas”, mas em Szentendre, onde também dá aulas, admite sentir “mais conservadorismo”.
Para além de ser “contra a liberdade de expressão”, a lei é ainda “muito vaga”, o que a torna ainda mais “perigosa”, já que dá liberdade ao Governo de agir sem grandes directrizes. Natural do Porto, o professor de 27 anos afirma ainda que nas escolas públicas “não há liberdade académica”, uma vez que os directores são nomeados pelo governo local, tendo de “ter uma certa afiliação de valores com o partido governante”. Aliado à nova medida, este facto, acredita, será determinante para que a desinformação relativamente aos assuntos LGBTI seja ainda mais intensa na Hungria. “Acho que o que ele [Viktor Orbán] quer é preparar uma geração completamente cega e insensível a toda a questão LGBTI, à liberdade e orientação sexuais.”
Texto editado por Ana Maria Henriques