Historiadores pela verdade
José Gomes Ferreira, como qualquer outro cidadão, goza de liberdade de expressão para dizer e escrever as barbaridades que lhe aprouver. Mas como figura pública respeitada que é, dele esperava-se mais ponderação e responsabilidade no uso do poder que esse estatuto lhe confere.
Um dos fenómenos que acompanhou a pandemia de covid-19 foi o aparecimento de grupos de profissionais que desvalorizavam ou negavam a gravidade da doença. Foi o caso dos Médicos pela Verdade ou dos Jornalistas pela Verdade, que nas suas redes difundiam desinformação e informação falsa ou sem validade científica sobre a pandemia, sugerindo a existência de uma conspiração entre todos os outros profissionais das mesmas áreas, que exageravam gravidade da doença, tendo em vista objetivos obscuros.
O jornalista da SIC, José Gomes Ferreira, parece querer navegar a mesma onda e dar início ao movimento dos Historiadores pela Verdade, com a publicação do seu mais recente livro, Factos Escondidos da História de Portugal, onde promete divulgar O que os compêndios não nos dizem.
A quantidade de imprecisões, contradições, informação desatualizada, interpretações abusivas contidas no livro já foi detalhadamente listada no podcast Falando de História dos historiadores Roger Lee de Jesus e Paulo M. Dias. Paulo Jorge de Sousa Pinto, outro especialista no período cronológico do trabalho de José Gomes Ferreira, remata que o livro não passa de “um completo embuste”, que está, “do ponto de vista científico, ao mesmo nível de teorias da Terra Plana ou antivacinas”.
Antecipando estas críticas, José Gomes Ferreira argumenta no livro, numa entrevista ao Expresso e na Prova Oral (a partir dos 7:35 e 24:38), com uma pretensa rede conspirativa, que começa no governo, passa pelos ministérios da Educação, da Ciência, da Cultura e das Finanças, pelos partidos do arco do poder, pela diplomacia portuguesa, conta com o beneplácito “dos orientadores de teses, dos decanos” e, através do controlo do financiamento para a investigação, inclui a academia e os historiadores oficiais, com o tenebroso fito de determinar a narrativa histórica de acordo com os interesses estratégicos do país. Chega a comparar o trabalho dos historiadores atuais, em democracia parlamentar consolidada, com os cronistas do tempo de D. João II e de D. Manuel, numa monarquia que se ia tornando absoluta de ano para ano (Prova Oral, 7:54 e ss.), e a considerar que, no que toca ao controlo de narrativas e opiniões, os “interesses modernos são muito mais sofisticados que a ditadura do Estado Novo e o célebre lápis azul”.
Só o grau de descabimento destas comparações já devia deixar os interessados no seu livro de sobreaviso. Adicionalmente, a ideia de que as centenas de historiadores da academia estão todos conluiados e tibiamente aceitam pressões superiores para não divulgarem certos factos e processos históricos é tão inverosímil que chegaria a ser ofensiva se conseguisse sequer ultrapassar o nível do patético, surpreendendo que tenha saído da mente de um homem inteligente e perspicaz como José Gomes Ferreira já mostrou ser ao longo da sua carreira como jornalista.
Como qualquer boa teoria da conspiração, a proposta por José Gomes Ferreira sugere a existência de dois grupos distintos: os historiadores oficiais, ou seja, os que pertencem à academia e omitem a verdade aos cidadãos; e os historiadores independentes, os únicos com liberdade e coragem para difundir a verdade, à qual chegaram depois de se limitarem à leitura de publicações que comprovam as suas ideias pré-feitas (esquecendo todas as outras) e de aturadas pesquisas online. Este foi, aliás, o método seguido pelo autor: na Prova Oral sustentou os seus argumentos com um “procurem na net” (aos 13:09, em relação à pretensão sem qualquer base científica que Marte não é vermelho) e com um “Onde é que estão as provas? […] Está tudo na internet” (15:54). Como bem refere José Carlos Fernandes, a informação disponível online não é automaticamente pior que a encontrada em suporte de papel. Basta lembrar que na internet, se encontram revistas científicas de elevadíssima qualidade, repositórios de teses e outros trabalhos académicos e vastos acervos de fontes primárias, enquanto em papel se encontra, por exemplo, o livro de José Gomes Ferreira, Factos Escondidos da História de Portugal. Bem mais importante que o suporte é ter espírito crítico para analisar a informação, fazer crítica da fonte, consultar o que outros já escreveram sobre o mesmo assunto e ter mais vontade em descobrir do que em ter razão. Com isto, não quero dizer que estas qualidades são exclusivas dos historiadores ligados à academia. Muitos historiadores independentes possuem-nas e demonstram-nas em obras que muito contribuíram para o conhecimento histórico. Não é de todo o caso do livro de José Gomes Ferreira.
Ainda sobre o assunto da informação online, José Gomes Ferreira revela uma representação totalmente anacrónica do historiador (Prova Oral, 18:43 e ss.), o qual, presumo, imagina curvado, com grossas lentes, a manusear documentos, registando os seus apontamentos em pequenos blocos de notas. Na verdade, há anos que os historiadores recorrem a acervos documentais que arquivos, hemerotecas, fototecas, cinematecas, mapotecas nacionais e estrangeiras disponibilizam online, bem como a modernas ferramentas informáticas e digitais para analisar os dados e expor as suas conclusões.
Pelo que escreveu no seu livro e do que disse na comunicação social, José Gomes Ferreira evidencia também uma visão completamente distorcida do que deve ser a História, ao mesmo tempo que entra em contradição com a acusação que faz aos historiadores (Prova Oral, 19:28) de estarem “comodamente sentados” e não quererem “mudar a História”. Na verdade, muitos investigadores têm procurado aumentar o conhecimento histórico sobre o período colonial português, dando voz aos colonizados, com estudos sobre a escravatura, o trabalho forçado ou a discriminação racial no Império. Contudo, para José Gomes Ferreira, estes novos acrescentos à História não contam, porque “é tempo de os portugueses deixarem de ter vergonha do passado e de se reconciliarem com a História de Portugal, que é muito maior do que as narrativas atuais nos fazem crer” e porque “a História é o que foi, nenhuma ideologia nem pensamento politicamente correto a consegue reescrever”. Ao sugerir “mudar urgentemente a abordagem à verdadeira História de Portugal [itálico meu]”, alterar “os critérios da investigação histórica” e “construir um grande centro de interpretação da História de Portugal” (excertos retirados do texto de Paulo Pinto), José Gomes Ferreira revela que para si a História não passa de um instrumento de promoção nacionalista que apenas deve enaltecer os grandes feitos do passado e esquecer ou subvalorizar tudo o resto. Um dos historiadores que melhor contraria esta ideia é o norte-americano Kevin M. Kruse, que escreveu no Twitter (tradução minha): “A História que exalta os méritos de uma nação, sem examinar as suas faltas, que prefere sentir-se bem a pensar criticamente, que procura celebrações simplistas em vez de análises profundas – bem, isso não é História; isso é propaganda.”
Naturalmente, José Gomes Ferreira, como qualquer outro cidadão, goza de liberdade de expressão para dizer e escrever as barbaridades que lhe aprouver, assim como as editoras têm o direito de publicar o que entendem lhes dará maior lucro (e um livro com um título bombástico, assinado por um nome conhecido, é normalmente uma aposta certa). Como figura pública respeitada que é (por mérito próprio), de José Gomes Ferreira esperava-se mais ponderação e responsabilidade no uso do poder que esse estatuto lhe confere.
Já a comunicação social devia também ser mais crítica na análise destas publicações, não as tomando como garantidas e procurando o contraditório de especialistas na área. Na Prova Oral, Fernando Alvim e Diana Duarte promoveram durante quase uma hora e sem contraditório as ideias erróneas de José Gomes Ferreira. As intervenções dos ouvintes que selecionaram constituíram mais oportunidades para as reforçar e para reforçar a autoridade científica que José Gomes Ferreira não tem. No Expresso, Ana Paula Almeida assume os conteúdos do livro como verdadeiros e as provas apresentadas como irrefutáveis, com perguntas que vão ao encontro das ideias do autor em vez de as tentar contraditar; numa das perguntas finais afirma previamente que o livro vai “esclarecer as dúvidas e corrigir alguns dos erros que nos ensinam desde tenra idade na escola”. Tanto quanto sei, apenas a Sábado ouviu especialistas nos temas abordados em Factos Escondidos da História Portugal, cumprindo a missão da comunicação social, como pilar da democracia, de promover informação acertada e precisa ao invés de hipóteses mirabolantes, mas que vendem mais. Seria desejável que outros órgãos se lhe seguissem e que, quando se interessassem pela História, o fizessem por aquela produzida por especialistas, que não será decerto tão bombástica, mas é sem dúvida mais educativa e pedagógica e contribui para a construção de um espírito critico entre os cidadãos, que tanta falta faz atualmente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico