“Os meninos têm uma pilinha e as meninas um pipi.” Foi o que nos ensinaram na infância. Tudo era simples nessa altura da vida. Depois na escola aprendemos sobre os genes, que dão as instruções para fazer o nosso corpo, como frases num livro de receitas. Estes livros de receitas estão guardados numa espécie de estantes: os cromossomas. Todas as instruções para fazer o nosso corpo estão guardadas em 23 pares de cromossomas, sendo o último par aquele mais importante para definir se temos uma pilinha ou um pipi. As mulheres têm dois cromossomas X e os homens um cromossoma X e um Y.
Mas será assim tão simples? Não.
A biologia humana é mais complexa e definir os sexos a preto e branco não faz sentido. A definição do nosso sexo é um processo complexo que envolve genes, hormonas, órgãos sexuais chamados gónadas, e outros chamados genitais, numa complexa rede de causa-efeito em que cada acção tem de acontecer num tempo e espaço próprio. Em algumas pessoas, o sexo determinado por cada um destes agentes pode não ser concordante com o outro. Por exemplo, os cromossomas podem ser de mulher, mas os genitais masculinos, ou os cromossomas masculinos e as hormonas mais parecidas com as mulheres e os genitais diferentes do que associamos às mulheres ou aos homens. Ainda não sabemos ao certo quantas pessoas têm estas discordâncias, mas poderão ser entre uma em cada 1000 ou 4000 crianças nascidas todos os anos. Antigamente encaixavam na definição de intersexo, mas mais recentemente passou-se a usar o termo de pessoas com diferenças na diferenciação sexual.
Como cientista interessada pelo desenvolvimento embrionário, sempre me fascinou o período pela sexta semana de vida, em que um embrião tem as gónadas primitivas dos dois sexos, com o potencial para se transformar em feminino, masculino ou algo entre os dois. Todos nós, a certa fase da nossa vida, não tivemos um sexo, e tivemos o potencial para ser várias opções do espectro do que é o sexo. No caso dos homens há um gene chamado SRY, localizado no cromossoma Y, que inicia uma cascata de eventos para haver uma transformação das gónadas indiferenciadas em gónadas masculinas, que produzem mais hormonas masculinas e dão ordens para se formar a pilinha.
Mas este processo varia entre todos nós e o resultado final pode ser algo que não tem a concordância de todos os agentes com um só sexo. Aliás, mesmo a quantidade de cromossomas que temos nem sempre é a típica XX ou XY. Muitas pessoas podem ter mais do que um cromossoma X: XXX ou XXY, ou mais um Y: XYY. Algumas pessoas até perder um deles, ficando apenas com um cromossoma X. Ciência mais antiga e ultrapassada dizia que homens com dois cromossomas X seriam mais efeminados por terem mais “cromossomas de mulher”, o que hoje sabemos não corresponder à verdade, e que um cromossoma X a mais não determina o género e orientação sexual. Isto só mostra como funciona a ciência: sempre a adquirir mais dados e rever conceitos antigos.
Hoje percebemos que dividir as pessoas em dois sexos por genes, cromossomas, hormonas ou mesmo genitais não faz sentido. Não há aqui ideologias. Há pessoas (e muitas) com diferenças na sua diferenciação sexual.
Mas enquanto a conversa na Biologia e Genética Humana está bem estabelecida, a sociedade ainda permanece na idade das trevas sobre o conhecimento dos outros sexos, e ainda se confunde sexo, género e orientação sexual. Os genes, cromossomas, hormonas e genitais não têm género ou orientação sexual. O género refere-se às nossas construções sociais sobre o papel de cada pessoa como homem, mulher e outros. Sabemos que culturas não ocidentais, como a nativa-americana, atribuem a algumas pessoas um terceiro género, com uma flexibilidade que a linguagem ocidental demorou a adaptar. E ao longo da história existiram termos para pessoas que não se encaixavam na definição ocidental de homem e mulher em sexo e género (há uma boa lista na página da Wikipédia para third gender). O sexo e o género não definem a orientação sexual, ou seja, o grupo de pessoas por quem nos atraímos ou não, havendo cada vez mais pessoas que se identificam com a categoria assexual.
A desinformação sobre os tipos de sexo faz com que tenhamos uma sociedade pouco preparada para quem tem diferenças na diferenciação sexual. Temos muitas vezes famílias fantásticas que acolhem a diferença do bebé que não é menina, nem menino, mas cujo maior receio é como a sociedade irá acolher a criança diferente. Advinham que na escola possa ser alvo de bullying. Quando tiver de preencher um inquérito num hospital, terá de deixar em branco o campo obrigatório do sexo, que muitas vezes não inclui outra opção que não seja masculino e feminino. Estudos de eficácia de medicamentos não dizem qual o seu efeito em pessoas com diferenças na diferenciação sexual. As bases de dados populacionais de Genética Humana ainda têm poucas pessoas de outros sexos. A nossa sociedade está pouco aberta para esta diferença.
Custa ler os comentários recentes que proliferam nos media portugueses a atacar a ideologia do género e misturando-a com a biologia do sexo e orientação sexual. Magoa pensar no que devem sentir os milhares de pessoas com diferenças na diferenciação sexual, que têm de ouvir/ler tanta parvoíce que ignora a sua existência ou que os classifica como raridade e malformação.
Há mais sexos do que “pilinha” e “pipi”. E não há ideologia nisto.